“Debrucei-me sobre mim mesma, tranquei-me na minha própria concha. A vida foi voltando aos poucos, como se a tivesse poupado para usá-la mais tarde. Surgiu uma mulher desconhecida de tudo isso, quantas mulheres haviam dentro de mim, todas saídas do meu próprio ventre? Hoje olho para cada uma delas e me reconheço”.
(Rachel Jardim, Vazio Pleno)
Ao longo de nossas vidas passamos por certas crises, sejam elas circunstanciais ou evolutivas, sobre as quais já falei aqui, e que se configuram como momentos em que somos convocados a uma revisão de identidade e de reposicionamento diante do mundo.
Nessas etapas, abrimos mão da ilusão da constância da autoimagem e somos chamados a desconstruir a concretude da identidade forjada até então. Fazemos, assim, pequenos lutos mesmo diante de novas possibilidades de atualização.
A morte de alguém próximo pode ser um precipitador de uma crise intensa, que nos coloca frente ao imprevisto. A morte de alguém querido se apresenta como uma ruptura abrupta no curso do destino, na qual somos obrigados a enterrar as perspectivas de um futuro planejado.
A morte nos revela que o eterno é na verdade efêmero e nos convoca a lidar com perspectiva a perecível da vida. Diante da morte do outro, ficamos frente a frente com a nossa própria finitude. Diante do desconhecido, temos que abrir mão da ideia de controle e ampliar nosso campo de sentido a fim de fazer construções possíveis na “nova” realidade.
Na última semana, conversando com uma amiga, ela usou uma linda metáfora para falar das perdas que a vida lhe impôs: “a vida em volumes”. Como uma grande obra literária, nossa existência é construída de diversos volumes. A minha vida já deve ter pelo menos uns cinco.
Essa amiga afirma ter encerrado um volume da sua própria história, iniciando a escrita de um novo, a partir das perdas que sofreu. Cada um carrega certo sentido de continuidade com o anterior, mas com enredos completamente diferentes. Reedições possíveis de si mesma.
Fiquei pensando nessas metáforas da vida e reforçando internamente o conceito de que o processo de luto é de fato uma transição psicosssocial necessária e decisiva na vida das pessoas. Invoquei a memória de muitos queridos que já se foram e me emocionei com o contexto de mortes em massa pelo qual estamos passando.
Em breve, no Brasil, já seremos quatrocentos mil. Quatrocentas mil famílias de luto, tendo que lidar com o sentimento vivo da separação abrupta e da dor dilacerante da perda. Quatrocentos mil futuros interrompidos precocemente, enterrados antes da hora. Por outro lado, quatrocentas mil possibilidades de reescrita de novos volumes da vida.
Tomara que tantos reposicionamentos sejam possíveis e que a inscrição de tantas mortes no curso da história da humanidade faça algum sentido frente ao absurdo do momento. Tomara que essas mortes tenham um propósito e nos permitam produzir existências mais sábias e mais ricas de significado.
As perdas nos oferecem os recomeços e ampliam a nossa percepção e, para onde olho, vejo inúmeras experiências de transcendência. Elas estão materializadas nas palavras escritas em novos volumes e também espalhadas pelos jardins: nas azaleias cor-de-rosa, nos girassóis gêmeos e nas flores de jade azul, todas elas plantadas pelas mãos daqueles que já se foram.
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