Um belo dia, você acorda numa cela escura, fria e úmida. Você tem fome, sede e medo. A cama é dura e as paredes são formadas por blocos de concreto cinza. Um deles estampa um número gravado na pedra lisa: 42. E no chão, abre-se um enorme vão retangular, como uma piscina cheia de nada.
De repente, ouve-se um ruído ensurdecedor. E uma plataforma surge de uma abertura do teto e se encaixa no chão. Sobre ela, há restos de comida de toda sorte: nesgas de pão esmiuçadas, pedaços de frutas amassadas, uma ave destroçada, talvez peru ou frango assado. Tortas de morango arruinadas, cascas de lagosta espalhadas e suco de laranja derramado por toda parte.
Tomado por instinto, você se debruça sobre aquilo que restou do banquete, quando um osso de frango cai bem na sua cabeça. Você olha para cima e vê um homem lambendo os dedos. Naquele instante, como num lampejo, tudo faz sentido: confinado numa prisão vertical de pelo menos 42 andares, você é o 42° prisioneiro a fazer a refeição naquele dia. E deve agradecer por ainda haver alguma sobra de comida.
Esse é o roteiro do filme espanhol “El Hoyo” (2020) — ou, em português, “O Poço” —, de Galder Gaztelu-Urrutia, um dos melhores filmes lançados no início da pandemia.
E a plataforma de comida, que segue descendo, cada vez mais escassa, pelas camadas mais profundas do poço, é uma metáfora para tragédias sociais, como a distribuição de renda em países marcados pela desigualdade, a formação de grupos privilegiados e, ou simplesmente, a pura imagem e semelhança do egoísmo do ser humano.
Cá em nosso poço sem fundo, mais requisitada do que uma travessa de lagostas ou torta de morango, a plataforma de imunizantes contra a Covid-19 passou pelo alto escalão do governo de Minas e desceu às camadas inferiores da federação. E, como num self-service depois das 14 horas, a bandeja de vacinas chegou aos municípios já um tanto surrupiada, com uma baixa de 828 doses.
Causa espécie quando vem à tona que, entre os privilegiados da Secretaria de Estado de Saúde, estão, além do então secretário, profissionais não prioritários, como servidores da assessoria de imprensa e pessoal de gabinete.
Cabe a nós, do andar de baixo, exigirmos uma explicação do chefe do Executivo, que não seja aquela velha dilmada esfarrapada: “eu não sabia de nada”.
Meritória foi a instauração da CPI dos Fura-Fila na Assembleia de Minas para apurar a suspeita de vacina para todos, desde que para mim primeiro. Que não sirva de palanque a parlamentares ou de holofote a celebridades com mandatos, mas que traga respostas à população mineira sob os auspícios da moralidade e da impessoalidade.
E quem sabe os deputados não encontram, no meio das sobras, um pedaço amarfanhado de queijo Araxá?
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