Quase podia se lembrar da voz da sua mãe lhe dizendo com ares de sabedoria: “Nunca diga nunca”. E, por mais que evitasse usar tal palavra, ensinada pelos lemas familiares da infância, foi inevitável. Quando, desavisada, abriu a porta, e lá se deparou com o “Nunca”.
Ele estava ali na sua frente, definitivo como sempre. Veio sem aviso, roubou-lhe o marido, o sorriso, o futuro projetado. Ele veio com a sua implacável tirania. Não quis saber sobre a sua vontade, não questionou-lhe sobre o seu desejo. Chegou certeiro e apresentou-lhe o trauma. Impôs-lhe a perda e obrigou-lhe ao luto. O ar lhe falta. O peito aperta. Sensação de sufoco. Não há lugar. Não cabe mais em si mesma nem em nenhuma outra quina do universo.
O Nunca, mais do que nunca, veio irreversível. Cortante. Nunca mais vai ver aquele corpo, nunca mais vai ouvir a voz rouca. Nunca mais vai sentir aquele cheiro de perfume, de suor e de segurança. Não, o cheiro de cigarro não mais vai incomodar. Não vai mais caminhar de mãos dadas e na mesma cadência, muito menos dançar salsa sob a luz do luar. Não farão mais planos de viajar para Cuba ou para as estrelas.
Não, não vai mais comer aquela comida cheirosa e apimentada, nem repousar a cabeça naquele peito. A música dedilhada nas teclas do piano nos dias chuvosos não será mais ouvida.
O vazio é tão grande que a casa ficou enorme. Está oca. O mundo está oco. Não adiantam as fotografias e as lembranças. Não haverá mais pequenas salvações, nem grandes transgressões. A alegria se esvai. As lágrimas escorrem sem rota e sem barragem. Para quê diários, cadernos pretos e pastas vermelhas? Para quê calendário e mensagens de batom no espelho do banheiro?
O Nunca é aquela irracionalidade do destino, aquele golpe certeiro que rompe elos, desencadeia crises. Ele é aquela úlcera que corrói esperanças, que desmancha uniões, que faz queimar de dor. O Nunca nos faz querer trocar de lugar, inverter papéis, viajar rumo à escuridão do desconhecido no lugar do outro.
É preciso falar. Deixar dissipar a emoção, transformar os sonhos compartilhados. É hora de ressignificar vidas e memórias, de reestruturar identidades. As dores são efêmeras como a eternidade. É preciso atravessar com calma, prudência, cuidado.
Na margem do lado de lá, o Sempre.
(em homenagem às vítimas e os “sobreviventes” da Covid-19).
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