Categories: Guilherme Scarpellini

‘Mank’, peixe e vinho branco

Gary Oldman, no papel do roteirista Herman Mankiewicz (Divulgação/Netflix)
Guilherme Scarpellini
scarpellini@gmail.com

Quando, no início da semana, a minha querida amiga Victória Farias escreveu que era a última segunda-feira de 2020, eu pensei com os meus botões: duvido. Oras, não devemos subestimar um ano que promete nos assombrar por muito tempo. Eis que estou aqui, ainda com a ressaca do Ano Novo, ávido em comentar o melhor filme de quê?

O melhor filme de 2020 foi “Mank”, de David Fincher. Com o glamour das produções dos anos 1930, faz justiça a um profissional do cinema que pode ser comparado ao baixista de uma banda de rock: ninguém sabe quem é, o que faz, o que come, onde vive. Estou falando do roteirista de cinema, mais exatamente de Herman J. Mankiewicz, o cara que escreveu o roteiro do maior filme da história do cinema, o “Cidadão Kane” (1941), de Orson Welles.

Para começo de conversa, “Mank”, produzido pela Netflix, é pra lá de bom porque ignora uma polêmica tão antiga quanto o próprio cinema: a quem, de fato, são devidos os créditos do roteiro de “Cidadão Kane”, a Welles ou a Mank?

Pelo contrário, deixa essa querela pra lá, e avança para explorar a relação entre roteiristas e diretores de cinema, evidencia o estranho ofício de escrever, não para ser lido, mas para ser assistido e, o melhor: escancara a sujeira dos porões da MGM (Metro Goldwyn Mayer), de onde saíram os grandes filmes da época, mas também práticas pouco republicanas que influenciaram a eleição do — não podia ser diferente — republicano Frank Merriam ao governo da Califórnia, em 1934.

Está bem, é um filme muito cabeça. Gostamos mesmo é de séries sobre rainhas com episódios de 50 minutos de duração. Então, tomem mais esta: “Mank” dura mais de duas horas de puro diálogo, e é rodado em preto e branco. Por sorte, são diálogos geniais, como o que se desenrola no jantar com o chefão da MGM, Louis B. Mayer.

É o clímax do filme: bêbado como um cão, Mank começa a contar uma paródia de uma espécie de Dom Quixote, dono de um império das comunicações, que persegue um ideal, mas acaba corrompido pelo poder. Eureka! Estava ali o roteiro de “Cidadão Kane”. Mas ninguém se deu conta. Por quê? Porque Mank termina o discurso vomitando no tapete e ainda observa: “o vinho branco saiu com o peixe”. E todos torcem os narizes e vão embora.

Ao contrário dos convivas do jantar da MGM, vejo o ano que se passou assim: no meio do peixe e vinho branco emporcalhando o tapete, pode haver salvação. “Mank” salvou o ano do cinema.

Clímax do filme ‘Mank’ (2020), de David Fincher: a cena do jantar (Divulgação/Netflix)
Guilherme Scarpellini

Share
Published by
Guilherme Scarpellini

Recent Posts

Ainda pouca mas bendita chuva

Eduardo de Ávila Depois de cinco meses sem uma gota de água vinda do céu,…

11 horas ago

A vida pelo retrovisor

Silvia Ribeiro Tenho a sensação de estar vendo a vida pelo retrovisor. O tempo passa…

1 dia ago

É preciso comemorar

Mário Sérgio No dia 24 de outubro, quinta-feira, foi comemorado o Dia Mundial de Combate…

2 dias ago

Mãe

Rosangela Maluf Ah, bem que você poderia ter ficado mais um pouco; só um pouquinho…

2 dias ago

Calma que vai piorar

Tadeu Duarte tadeu.ufmg@gmail.com Depois que publiquei dois textos com a seleção de manchetes que escandalizam…

3 dias ago

Mercados Tailandeses

Wander Aguiar Para nós, brasileiros, a Tailândia geralmente está associada às suas praias de águas…

4 dias ago