Quando, no início da semana, a minha querida amiga Victória Farias escreveu que era a última segunda-feira de 2020, eu pensei com os meus botões: duvido. Oras, não devemos subestimar um ano que promete nos assombrar por muito tempo. Eis que estou aqui, ainda com a ressaca do Ano Novo, ávido em comentar o melhor filme de quê?
O melhor filme de 2020 foi “Mank”, de David Fincher. Com o glamour das produções dos anos 1930, faz justiça a um profissional do cinema que pode ser comparado ao baixista de uma banda de rock: ninguém sabe quem é, o que faz, o que come, onde vive. Estou falando do roteirista de cinema, mais exatamente de Herman J. Mankiewicz, o cara que escreveu o roteiro do maior filme da história do cinema, o “Cidadão Kane” (1941), de Orson Welles.
Para começo de conversa, “Mank”, produzido pela Netflix, é pra lá de bom porque ignora uma polêmica tão antiga quanto o próprio cinema: a quem, de fato, são devidos os créditos do roteiro de “Cidadão Kane”, a Welles ou a Mank?
Pelo contrário, deixa essa querela pra lá, e avança para explorar a relação entre roteiristas e diretores de cinema, evidencia o estranho ofício de escrever, não para ser lido, mas para ser assistido e, o melhor: escancara a sujeira dos porões da MGM (Metro Goldwyn Mayer), de onde saíram os grandes filmes da época, mas também práticas pouco republicanas que influenciaram a eleição do — não podia ser diferente — republicano Frank Merriam ao governo da Califórnia, em 1934.
Está bem, é um filme muito cabeça. Gostamos mesmo é de séries sobre rainhas com episódios de 50 minutos de duração. Então, tomem mais esta: “Mank” dura mais de duas horas de puro diálogo, e é rodado em preto e branco. Por sorte, são diálogos geniais, como o que se desenrola no jantar com o chefão da MGM, Louis B. Mayer.
É o clímax do filme: bêbado como um cão, Mank começa a contar uma paródia de uma espécie de Dom Quixote, dono de um império das comunicações, que persegue um ideal, mas acaba corrompido pelo poder. Eureka! Estava ali o roteiro de “Cidadão Kane”. Mas ninguém se deu conta. Por quê? Porque Mank termina o discurso vomitando no tapete e ainda observa: “o vinho branco saiu com o peixe”. E todos torcem os narizes e vão embora.
Ao contrário dos convivas do jantar da MGM, vejo o ano que se passou assim: no meio do peixe e vinho branco emporcalhando o tapete, pode haver salvação. “Mank” salvou o ano do cinema.
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