A hora da estrela – Fonte: arquivo pessoal (foto da autora, retirada do livro “Un ser llamado Regina” de Clarice Lispector e ilustrado por Rebeca Luciani)

Daniela Piroli Cabral
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“Escrevo por não ter nada a fazer no mundo: sobrei e não há lugar para mim na terra dos homens. Escrevo porque sou um desesperado e estou cansado, não suporto mais a rotina de me ser e se não fosse a sempre novidade que é escrever, eu me morreria simbolicamente todos os dias” (Clarice Lispector, em A hora da estrela)

De frente para a tela branca do monitor, a mente de Regina divagava. O pensamento acelerado saltitava rapidamente como os impulsos axonais dos neurônios. Estava prestes a entrar em curto. Diferente de outros tempos, custava-lhe preencher aquelas linhas vazias de texto. Sentia-se pressionada pela urgência do agradecimento. Seria homenageada. Mas como? Se era mesmo uma impostora. Todos saberiam em breve.

Há tempos, vinha contemplando os silêncios. Sabia que neles habitavam as respostas de sua incompletude e todas aquelas questões. Além disso, a superexploração a havia deixado árida. Esgotaram-se as possibilidades de transcendência. 

Todas as palavras, quarta dimensão do mundo, já haviam sido ditas. E escritas. E rimadas e cantadas. Já não saiam, estavam todas presas nela, impregnando o seu ser por inteiro, corpo e mente. As palavras a atormentavam, não mais lhe davam paz, deixando-a num duplo limbo. 

Na infância, a morte da mãe tornou-se um traço mnêmico estruturante em sua psiquê. Precisava das emoções fortes para se sentir viva. Chegava a ser irresponsável procurando a intensidade das experiências. Andava na beira. Pensou em dissertar sobre isso. Mas seria um flagelo.

Mimetizou-se na rotina, quis escrever sobre os ambulantes na rua, sobre os trabalhadores da classe operária, vidas cotidianamente heróicas. Lembrou-se de uma cena ocorrida no centro da cidade. No fim da noite, um homem procurava bitucas de cigarro no chão da calçada, resgatando aquelas que ainda que poderiam ser (re)fumadas. A fissura do vício sustentava aquela busca pelos vestígios da boemia. 

Sentia-se a maior parte do tempo à deriva, quanto mais se conhecia, menos sabia de si mesma. Carregava todas as dores do mundo. Espreitava a chuva que escorria pela janela como densas lágrimas da tristeza do lado de fora. “Daqui a pouco vai fazer frio”, pensou. Era visceral.

Lembrou-se das memórias afetivas da infância, quis escrever sobre a cadeira de balanço da sua avó. Mas estava à espera, como se algo imprevisto e inusitado estivesse para acontecer. Reviveu um sonho lindo em que visitava a cidade de Tordesilhas, as camadas do inconsciente lhe revelavam as ruínas da separação.

Quis escrever sobre o amor. O amor como a coisa mais difícil da vida. Imaginou amores não vividos, recordou o seu primeiro amor, aos 12 anos, quando a vergonha lhe corava as faces. Quando teve a audácia de pegar na mão do pretendente. Era clandestina.

Conseguiu cuspir um esboço:

Agradecimento especial às membranas. A membrana é fronteira, limite tênue entre dois mundos, o de fora e o de dentro. Entre a luz e a escuridão, entre o som e o silêncio. Lugar de trocas como placenta. A membrana, mesmo fina e delgada, às vezes não se rompe. Permanece intacta. Invisível, na quina da galáxia, ela é semente. E possibilidade de vida.

Obs: Texto em homenagem ao centenário de Clarice Lispector, que será comemorado amanhã, dia 10/12/20. Hoje, 09/12/20, faz 43 anos do seu falecimento. Recordar seu nome é resgatar a literatura, o feminino e as possibilidades de existência e de transcendência através da escrita.

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