Tá lá uma criança estendida no chão
Em vez de criar, tecla,
Em vez de fantasiar, anestesia,
Em vez de uma roda, um vídeo,
Em vez de uma prosa, prisão,
É um silêncio servindo de amém.
As músicas De Frente Para o Crime, de Aldir Blanc e João Bosco, com construção de Chico Buarque de Holanda surgiram na minha cabeça assim que pensei no tema para minha coluna no Blog Mirante. Com a passagem do Dia Das Crianças, quis falar algo em relação a data. Poderia ser um enredo sobre a alegria de tê-las por perto, sua inocência, peraltices e descobertas do mundo. Porém, há urgência para outros assuntos. Com a memória dessas músicas e sua associação – o automatismo humano, me orientei para esse alerta. Importante ressaltar que também mantenho estudos sobre os pequenos na Rede Miguilim do Fórum do Campo Lacaniano de BH.
Segundo Vera Iaconelli, psicanalista, colunista da Folha de São Paulo e estudiosa sobre a parentalidade, já temos uma geração perdida para o mundo virtual. Numa live¹ com Antônio Quinet a escritora compara o vício atual ao do cigarro nos anos 60. Todos sabiam – mesmo não sabendo – que esse era o principal causador de câncer. O que os pais fazem hoje é dar um maço de cigarros por dia para suas crianças. “É preciso fazer uma revolução”, com muito trabalho de conscientização e orientações sobre esse novo vício. Há a substituição do prazer da dopamina em correr, pular, colocar o corpo em movimento numa espacialidade para o de teclar. Essa é a fixação da mente na tela e o corpo no espaço.
Quinet observa que hoje o superego está nos likes para a garotada. Onde deveria ter uma brincadeira de criar e experimentar o jogo da aproximação e separação, há somente uma tecla que direciona o teclador. Assim, a/o Matrix “comanda” as mentes. Uma teclada que direciona a outra e outra. As crianças de três anos estão viciadas. Assim é para o adulto, assim é para os pequenos. As crianças são pegas muito cedo pelas redes sociais. E, querendo ser celebridades, são capturadas pelos likes. Com isso o que importa é a imagem. A imagem agradou ou não. Não há mais um desejo construído ao longo do tempo de estudo, trabalho e realização. É o imediatismo e a instantaneidade das redes sociais. Dura pouco também.
O alerta não é novidade, mas temos a cada dia mais experiências de adultos, jovens e crianças, e até documentários sobre o uso das redes virtuais e seus efeitos malignos.
O documentário estadunidense (2020) O Dilema das Redes enfoca no “explicitar a manipulação sofrida pelos usuários das redes sociais com o objetivo de propiciar ganhos financeiros às empresas. Para isso, as redes usam técnicas do capitalismo de vigilância e da mineração dos dados.”². O objetivo da rede é a venda, assim alimenta a ilusão de que com produtos diversos a felicidade pode ser alcançada. O idealizador dos likes relata, no filme, que não imaginava os efeitos que ele causaria, era para ser uma coisa boa. Fato é que muitos jovens se orientam por eles. Os estudos e relatos de distúrbios mentais que o vício tem causado aumentam a cada ano. A orientação se é bem aceito ou não é por essa via – as curtidas.
Iaconelli e Quinet apontam que a parentalidade virou excedente – os pais precisam produzir, essa é a lógica do neoliberalismo. Onde está o tempo de serem pais, mães, avós? Dá trabalho ocupar esse lugar e é necessário tempo. Perguntam-se: por que não deixar a criança com seus desenhos? É tudo lindo!
Lacan em Duas Notas Sobre a Criança³ esclarece que “o sintomas da criança se encontram na situação de responder por aquilo que há de sintomas na estrutura familiar.”
Nossas crianças estão fazendo laço social? Redes sociais não são laços sociais.
Teclou daquela vez como se fosse à última
Checou seus likes como se fossem tudo
E espatifou na contra mão como se fosse autômato.
Matrix 4 é uma promessa para 2021. O que vem por aí?
*
Referências:
¹ @antonioquinet, live: Pais e Filhos na Pandemia, 27/09/20
² https://pt.wikipedia.org/wiki/The_Social_Dilemma, acesso 13/10/2020
https://www.netflix.com/br/title/81254224
³ Estas duas notas, entregues manuscritas por Jacques Lacan à Sra.Jenny Aubry, em outubro de 1969, foram publicadas por esta pela primeira vez, com minha autorização, no seu livro editado em 1983.J. -A. M.
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Momento realmente preocupante porém desafiador. Nem tudo está perdido, apesar de algumas batalhas, mas precisamos reagir pra não perdermos a guerra da vida. Sinto falta da juventude rebelde.