Mais uma vez, cá estou eu falando da pandemia e dos seus indeléveis efeitos na vida da gente. É que a crise trazida pela Covid-19 demora muito mais do que eu esperava e me tangencia de tantos modos, que peço perdão se pareço monotemática.
Desde o início, mobilizada pela incipiente briga “salvar vidas ou salvar a economia” e pressentindo que os resultados dessa discussão seriam mesmo infrutíferos, decidi iniciar uma campanha de arrecadação de doações em dinheiro para aquisição de alimentos para a população carente de Belo Horizonte.
Por intermédio de uma amiga enfermeira e com o apoio do meu então companheiro, entrei em contato com o Movimento de Luta dos Bairros, Vilas e Favelas (MLB) e, desde então, arrecadamos mais de 22 mil reais (convertidos em cerca de quinhentas cestas básicas) a partir da nobre e generosa doação de muitas pessoas.
Além de dinheiro, foram doados diversos itens como eletrônicos (celular, notebooks, TV), máscaras de proteção individual, medicamentos, móveis, brinquedos e roupas.
Tenho me sentido enormemente gratificada em ajudar e poder doar um pouco do meu tempo nesta costura, nesta articulação de pontas. Perceber a disponibilidade e a solidariedade das pessoas tem me feito muito bem. Tenho experimentado na pele “a revolução do altruísmo”.
Ontem, uma das lideranças do movimento veio até a minha casa buscar alguns objetos que eu havia separado para doar: roupas, livros, utensílios domésticos. Ela trouxe seu filho, de 4 anos. “Me desculpe, eu não tive com quem deixá-lo”. Inevitável não pensar em Miguel.
O garoto se assusta com as cachorras, faz que vai chorar, corre para o colo da mãe. Ela entra em casa carregando-o no colo e me agradece. “Sua articulação está fazendo muita diferença”. Ela me diz que na última distribuição das cestas estavam previstas cerca de 50 famílias, mas que na hora da entrega, “apareceram” mais 35 pessoas que não estavam cadastradas, houve certo tumulto e início de briga pelos alimentos. Ela me questiona: “Quem, se não tiver passando muita necessidade, vai brigar por causa de comida?”. Fico atordoada com essa afirmação.
Ajudo-a colocar as caixas e as sacolas no elevador enquanto observo o pequeno garoto se divertir admirando os peixes que colorem o aquário. Ele aponta um deles e diz alguma coisa. Desço com eles até a portaria, onde um Uber os espera para retornar à ocupação.
O garoto, altivo e falante, observa atento o porteiro que está de pé segurando a porta de saída, olha para o jardim bem cuidado da entrada do meu prédio, volta-se para a mãe e exclama: “É outro mundo! É outro mundo!”.
Subo para o apartamento com os olhos cheios de d‘água. As lágrimas se equilibrando nas bordas dos olhos, prestes a caírem. Respiro fundo. Respiro mais uma vez. Ligo o computador e escrevo este texto. As palavras inocentes e sábias daquele garotinho ecoam na minha cabeça.
Não há limites quando se trata de cair em si, de se humanizar, de se colocar no lugar do outro. Não há altruísmo suficiente que resista a essa diferença de mundos. O apartamento alugado em que moro fica apenas 9 quadras de distância da casa daquele garoto. Inevitável não pensar: “De que adianta ir em busca de outros mundos, de velhos mundos, se há muitos mundos ao nosso redor para se olhar?”.
Referências:
– RICARD, M. A revolução do altruísmo. Palas Athenas, 2013.
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