O toque de Midas

Victória Farias

É estranha a sensação de se dividir a solidão. Entende-se (pelo menos eu entendo) que a solidão deva ser vivida a só, do jeito mais profundo possível. Mas isso não é o que vem acontecendo nessas solidões aglomeradas nos últimos meses.

Dizem (alguém diz, não sei quem) que não é permitida a reunião de pessoas em locais públicos. Mas, dentro das casas, principalmente agora, isso é bem diferente. Fico pensando naqueles que, por saírem cedo e voltarem altas horas da noite, nem sabiam com quantos outros dividiam o mesmo espaço. 

Aqui na minha residência, localizada ao centro da contagem das abóboras, sigo dividindo minha solidão particular com minha avó de 80 anos, que, por algum motivo, de vez em quando, sente um ímpeto irrepreensível de ir ao banco; e com meu primo, que compartilha a casa dos 20 comigo.

Dia desses, enquanto eu estava quebrando a cabeça para resolver algum problema sem solução envolvendo o home office (sem itálico; a palavra já faz parte da alfabetização primária da base educacional do Brasil), escuto, vindo da cozinha: – eu não aguento mais! Eu não aguento mais olhar para a cara de vocês, eu preciso sair! – . Eu, que já tinha me contentado com minha derrota para a tecnologia, me juntei ao coro: – eu não aguento mais! Depois disso, eu não quero ver vocês nunca mais! Me deixem sair, pelo amor de Deus!

Entre estudos e trabalho, passo todo o meu tempo tentando conciliar o equilíbrio mental nesses afazeres. Meu primo, que enveredou pelo lado das engenharias, anda pela casa procurando com o que ocupar sua mente, um tanto preocupada com a possibilidade das aulas de graduação do semestre que vem continuarem sendo na modalidade Ensino à Distância.   

Nessas andanças entre sala-cozinha-banheiro-quarto-corredor, uma ideia surgiu a ele e a minha avó. Aqui, nesse ponto da história, gostaria de deixar claro que nada tive a ver com isso.

Como uma boa casa tradicional, a nossa carrega alguns adornos de metal pesado, onde foram talhados desenhos de flores e outras coisas indescritíveis; são pés de mesa de centro, pés de mesa de canto, uma tartaruga de metal, e até um conjunto de talheres que se moldam na parede da cozinha.

Em mais um dia de trabalho remoto, escuto um barulho de serragem vindo de um dos cômodos. Me certificando de que não estava em um sonho, pois minha casa é muito pequena para ter virado uma serralheria, verifico que meu primo, junto à minha avó, decidiram polir todos os metais da casa (incluindo as moedas). 

Da noite para o dia, a cozinha tinha virado uma oficina, com produtos a base de querosene sendo pincelado nos pés das mesinhas de centro; o espelho da sala fora retirado e agora passava por um minucioso trabalho de limpeza, cantinho por cantinho.

É um processo árduo, que requer muita paciência e cuidado. Mas, depois de concluído, tudo simplesmente brilha. A sala agora tem o tom de ouro envelhecido; o chão quase não merece sustentar os pés da mesinha de centro, que parece imaculada demais para estar ali. 

Midas está para finalizar seu trabalho. Orgulhoso e sem pretensão de guardar nada para si, apenas admira seu progresso. Mas, parece que isso não foi o suficiente para superar o momento. Semana passada, quando o prefeito anunciou novamente o fechamento da cidade, outro estrondo veio: – eu não aguento mais! Eu não aguento mais olhar para a cara de vocês, eu preciso sair! 

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