Dona Titide era uma das nossas vizinhas lá na rua C. Aos meus olhos de menina, ela deveria ser uma senhora muito, muito velhinha, assim como a minha mãe. Tampouco saberia dizer o que seria “velhinha”. Só sei que o meu olhar infantil pousava sobre ela com admiração contida: não queria que a minha mãe soubesse que meu sonho maior era, um dia, ser como dona Titide.
O meu encantamento vinha de uma figura ímpar: enquanto todas as mães se vestiam com roupas lisas, sem nenhum atrativo, dona Titide se vestia de estampas lindas, em seda pura, flores nos mais diversos tons, tudo muito colorido. Pensam vocês que era um vestido liso, reto e sem graça como os de todas as outras mães? Não! Havia babados por todos os lados: nas mangas, decote, numa fenda lateral e até na barra da saia, às vezes!
Ela não usava chinelos, usava tamancos, igualmente coloridos, com pequeno salto, o bastante para lhe tornar elegante o caminhar. Dois anéis, de pedras coloridas, em cada mão. Não usava aliança. Nos dois braços, pulseiras de metal que eu jurava, seriam todas de ouro. Havia também uma cruz enorme, dourada, que entrava em seus decotes deixando de fora um cordão grosso, bem diferente do que todas as outras mulheres usavam.
Na nossa cidade havia um hábito: o desejo de todas as mães da nossa rua era usar, nas missas do domingo, um conjunto “ouro e côco”. Esse trabalho de ourivesaria era bonito, feito na casca do côco com engastes em ouro. Havia uma correntinha com uma cruz, havia brincos pingentes, brincos colados à orelha, pulseira com rosáceas, alianças e anel. Todas as mães usavam aquelas delicadezas, menos ela.
Os enormes brincos de argola misturavam-se a uma cabeleira loura, longa, com cachos que chegavam aos ombros. De cada lado ela prendia os cabelos com travessas enfeitadas também por pedrinhas coloridas. Muito cabelo, muito louro, muito cacheado que ficavam desalinhados, nada certinho, nada penteadinho. Uma beleza olhar aquilo e ficar imaginando quando seria eu a ter aqueles cachos caindo ombro abaixo! Será que eu poderia um dia ser loura?
Um detalhe fazia dela a mais especial de todas: um dente de ouro, bem do lado, um canino talvez? Nenhuma das outras mães possuía dente de ouro. Como poderia ter feito aquilo? Me perdia em pensamentos que não me levavam a lugar nenhum. Para mim tudo era um mistério. Um dente de ouro, como podia ter nascido nela?
Dona Titide era mãe de dois filhos, já adultos. Aos meus olhos de criança – seis ou sete anos – eram “gente grande”, mas com um sério agravante: o filho era uma pessoa normal que trabalhava, tocava acordeon, sempre limpo e arrumado. Em sua figura impecável, destacava-se um bigodinho fino, parecendo entrar boca adentro, me lembrava algum ator de cinema. No entanto, a filha tinha um sério problema: Lia não andava direito, se arrastava e precisava sempre de alguém com ela. Não falava e usava babador como um bebê. A boca sempre aberta e uns sons que eu não conseguia decifrar. Minha mãe dizia: – Coitada, é doente. Nasceu assim. Defeituosa.
– Mas por quê? Como?
– Ah, menina, você faz perguntas demais. Nasceu assim e pronto.
A cerca de arame, que dividia nossos quintais, permitia troca de frutas, de verduras, conversas informais e quando eu menos esperava lá estava ela, conversando com a minha mãe, segurando do lado a parte da saia que ela levava até a cintura. Ficava então imaginando que a figura dela poderia ser uma “folhinha”.
Folhinha? Nos anos 1960 era muito comum que as casas possuíssem folhinhas ao invés dos calendários que vieram depois. Eram fotos de mulheres bonitas em poses interessantes. Na nossa sala de jantar havia uma mulher linda, encostada em uma árvore olhando lânguidamente para o céu. Admirando com atenção esse retrato, era assim que eu via a dona Titide: num grande quadro. Uma artista. Uma rainha. E, um dia, eu seria como ela.
O tempo passou, ultrapassou e me encontro no Teatro Bird. Vamos encenar uma peça de Juan Fariña, sobre os ciganos e eu farei o papel de Lucrécia, uma defensora do seu povo e dos seus costumes.
Me olho no espelho e acho que estou bem caracterizada. Uma peruca longa, loura, de cachos descendo pelos ombros. O vestido de época tem fundo marrom, bastante florido e com babados que caem por todo lado: pelas mangas, ao redor do decote, na fenda que me deixa à mostra uma das pernas; a maciez e o movimento da seda me levam a rodar e rodar diante do espelho.
Sorrio para a imagem que vejo e me lembro da minha rainha. Da rainha Titide. Nunca mais soube dela nem da família. Para onde se mudaram? O que foi feito dela? Pensamentos infantis me chegam em grande quantidade e em enorme velocidade. São pequenas cenas que me passam, como num filme. Me aproximo do espelho e sorrio para mim mesma.
E falta sim, o dentinho de ouro!!
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