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Sempre-viva

Victória Farias

Marcos fez questão de parar pela segunda vez naquele dia para comprar mais um maço de cigarros. Estava nervoso. A notícia de que seus pais viriam para sua casa, recebida na noite anterior, tinha caído como uma bomba naquele coração ansioso. E era sempre assim, eles nunca avisavam com antecedência. 

Achavam que tinham o direito de chegar de surpresa e caminhar pelos corredores do seu apartamento apertado, com uma prepotência que parecia não deixar espaço para os seus móveis se assentarem. Tudo pareceria fora do lugar. 

E as perguntas. Ele odiava as perguntas. Eram sempre as mesmas. E o trabalho? Já está namorando? Como assim você não tem ninguém? Você já está ficando velho. Não vai ter ninguém para cuidar de você quando precisar?

A verdade é que ele se sentia novo o suficiente. A despeito da idade que marcava no seu RG, que avançava a cada ano que passava, ele se sentia bem com a solidão.

Comprara um apartamento em frente as montanhas, na divisa de Belo Horizonte com Sabará. Sabia cozinhar, às vezes trazia trabalho para casa e passava seu final de semana assistindo filmes clássicos na pequena televisão acoplada a parede do quarto.

A Morte Lhe Cai Bem (1992) era o seu preferido. Não sabia o porquê, mas aquele jogo bizarro de brincar com a morte e sempre sair perdendo o encantava. Mas todo esse prazer que sua casa lhe assegurava caía por terra quando sua mãe entrava por aquela porta e lançava o olhar sobre o lugar. Era como se tudo perdesse a cor e a disposição da mobília não fizesse mais sentido.

Não podia negar a visita dos dois. Isso não era uma opção, e as consequências seriam bem piores do que um comentário do tipo: “não entendo porque tantos livros de economia para um publicitário. Eu sempre disse que você deveria escolher uma profissão que lhe permitisse ter algo além do que uma casinha.”

Era trágico, e ele sabia disso, mas não tinha para onde correr. Depois de pagar o maço, guardar o troco tremendo e andar vagarosamente de volta para o trabalho fumando o 21º cigarro do dia, estava decidido que era hora de fazer alguma coisa, tinha que, não, melhor, necessitava que alguma coisa fosse diferente dessa vez. 

Tinha algumas ideias em mente. Podia dizer que não se sentia bem com a visita dos dois. Ou, até mesmo, explicar que esse era o jeito que ele levava a vida, ou, melhor ainda, falar que não estava preparado para um relacionamento, que se sentia bem exatamente desse jeito. 

Mas, naquela noite, quando a campainha tocou e o perfume do seu pai cruzou o corredor até seu pulmão um tanto corroído pela nicotina, ele se calou. Os recebeu, respondeu todas as perguntas religiosamente, como em todas as outras vezes, riu com os lábios, mas se negou a concordar com aquelas atrocidades com o pensamento. Jantaram, criticaram, se levantaram e ele os levou até a porta. Marcaram para se ver de novo ano que vem. 

Depois de respirar fundo e perceber que havia sobrevivido ao olho do furacão, ele largou os pratos exatamente onde estavam. Guardou o resto do vinho, trancou a porta e foi para o seu quarto. Ligou a TV e continuou no minuto 44’50’’ do filme que tinha recomeçado na noite anterior.

Entendeu que, assim como os sentimentos que guardava dentro si, certas explicações não eram dignas de pessoas que não os cultivavam. Devia explicações a ele e de vez em quando ao seu reflexo no espelho embaçado depois de um banho quente. Antes de concluir esse pensamento, soltou uma gargalhada na cena do necrotério. Sentiu uma grata surpresa ao redescobrir que Meryl Streep sabia – e muito bem – fazer comédia.  

*

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