Duas palavras que sempre escutei com desconfiança. Agora, com a mortalidade que o coronavírus nos sujeitou, sinto horror ao ouvi-las. Antes e agora a pergunta que surge na minha mente é: até quando o homem vai competir com ele mesmo? Sendo ainda mais enfático: até quando?
As palavrinhas miseráveis são: recorde e superar.
Em anos passados, elas eram pronunciadas fazendo alusão aos desafios esportivos, econômicos e administrativos. Agora tomaram o sentido de morte.
Fui ao dicionário para ver se conseguia suporte ao que quero clarear. Eis as definições:
Superar – ser superior, exceder, suplantar, ultrapassar, passar, sobrepujar, sobrelevar, avantajar-se.
Recorde – façanha esportiva registrada oficialmente, que consiste na ultrapassagem de tudo quanto se fez no gênero: bater recorde. Ultrapassar o procedente.
A frase “o homem é o lobo do homem” do dramaturgo romano Platus – em latim “homo homini lúpus” e famosa no livro Leviatã, de Thomas Hobbes, esclarece esse sentido profundo das palavras recorde e superar.
Os atletas são aqueles movidos por competições, e que a cada ano necessitam de esforços sobre-humanos para superarem uns aos outros. Não há competição que atraia atenção se não houver o recorde. Sempre achei que era uma tarefa que algum dia teria fim. Há limite para o corpo e mente humana!
Em tempos de COVID-19, essas palavras aparecem como: a ultrapassagem foi conseguida. No início da pandemia, quando assistia TV e escutava esses termos, sentia uma estranheza de ferir meus ouvidos – continua agredindo. Houve momentos que praticamente escutava o locutor falando: “Oba! Novo recorde”. Assistir o gozo (sentido lacaniano: prazer no desprazer) nesse dito, foi demais para mim.
Parei de ver telejornal todos os dias para me proteger, pois estava insuportável. Direcionei meu tempo para estar nos grupos de estudo da psicanálise.
Pensando no sintoma da nossa civilização, vemos que esse gozo do recorde, do superar, já está presente há anos. Deixamos de ser uma civilização cooperativa e associativa. Hoje, o valor é o da competição – “bater de frente”. Assim barragens estão se rompendo e vidas sendo levadas.
O filósofo e músico Vladimir Safatle esclarece, em artigo recente, que o neoliberalismo não chora suas mortes e sim as conta.
Será que os seres humanos são tão incansáveis? O que o recorde produz em nós?
Vamos chorar e ficar tristes sim! Como não elaborar esse luto da vida pregressa e com tantas vidas que estamos perdendo em tão pouco tempo? Ambos não voltam.
O mundo “parou”, empresas, aviões, carros, hotéis, shoppings estão desativados.
Será que o sintoma da nossa civilização – da produção, do recorde – quer nos mostrar algo?
O ser humano não é mercadoria e elas não nos sustentam. Mais uma vez, a natureza vem mostrar ao homem que ele não tem domínio total sobre ela. Ainda é um tabu para ele não dominar sobre sua própria morte.
Assim, coabitação da nossa espécie e as demais em harmonia no planeta Terra e reflexões sobre nossas necessidades, são o mínimo desejado nessa crise mundial.
Recorde e superar? De que? Para que? Tenho incomodo com os heroísmos atuais. A cada flash aparece um novo e uma nova bandeira a ser defendida.
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