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O Imprestável (I)

Daniela Piroli Cabral
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No alto dos seus 39 anos, André era um digno merecedor do Prêmio Nobel da Inutilidade. Até ali, não mostrava nenhum feito que pudéssemos classificar como válido ou proveitoso.

Nunca havia trabalhado ou dedicado seu tempo a um propósito que não fosse ele mesmo. Seu biotipo parrudo e hipotônico revelava um caminhar lento e vacilante.

Nunca tinha conseguido sair da sua condição de sedentarismo, apesar de algumas tentativas frustradas. Sua fala era vagarosa e acumulava saliva nos cantos da boca.

Nada o incomodava. Nem o sobrepeso que se formava na região abdominal, nem as rugas e os cabelos brancos que começavam a aparecer, muito menos a urina e as fezes do cão no tapete do seu quarto. Na verdade, só mobilizava certa irritação quando era acordado antes das dez. 

Tinha uma estreita amizade com controles remotos e joysticks. Passava suas tardes e noites em frente a TV e ao computador jogando video-game, pois só Deus sabe como lhe era custoso vencer a própria inércia. Não diferenciava dia de semana de sábado ou domingo. Todos os dias eram igualmente vazios. Entupia-se de café, coca-cola e cigarro. Essa era a base de sua nutrição. Era mesmo um misto de preguiça com falta de habilidades.

Procurar emprego? Nem de longe essa ideia passava por sua cabeça. Nunca havia namorado. Sequer exibia desejo. Praticamente não saía de casa. Ainda morava com a mãe e com a avó. As duas o cercavam de mimos e cuidados desde a mais tenra infância.

O excesso de zelo e proteção escondiam um medo velado. Desde quando era criança, Maria sabia da incompetência de seu único filho e receava a sua falta de autonomia na vida adulta. Era evidente a falta de energia que André mostrava em seu precário e tedioso brincar.

A princípio Maria acreditava que André padecia de timidez crônica. Depois, teve convicção de que tudo aquilo não passava de uma “personalidade indiferente”. Sua avó, Dona Amélia, costumava profetizar aos quatro cantos:

Esse mininu num vai dá em nada na vida. Imprestável.

E profecia de avó sempre se cumpre.

Na escola, aquele suplício. André vivia no mundo da lua, seu alheamento em relação aos estudos era nítido. Nada o interessava. Nem o conteúdo, nem os colegas, nem o lanche, muito menos as professoras.

Ano após ano foi sendo “empurrado” até seus 15 anos, quando, após sua segunda reprovação no sexto período, a diretora emitiu o diagnóstico. André tinha esgotado a sua capacidade de aprendizagem. Ali era o mais longe que conseguiria ir.

A mãe, farta que estava, se deu por satisfeita. Dona Amélia tinha razão: ele não ia dar em nada.

(continua)

Daniela Piroli Cabral

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