Parte das crianças carrega o inconfundível brilho da bondade no olhar. Outra parte carrega brasas. Foi exatamente ao lado de uma dessas meninas endiabradas, capazes de esconder toda a traquinagem do mundo inteiro dentro de pouco mais de metro e meio de altura e poucos anos de vida, que passei as férias de fim de ano, das quais retorno, não sei como, com vida.
Sofri o primeiro atentado na manhã de Natal. Eu me despertava com a cabeça ainda cheia de vinho português, quando tateei o chão com os pés em busca de meus sapatos. Mas encontrei apenas o chão gelado. Eis o prenúncio de uma manhã descalço. Pois eu só os acharia horas depois, imundos, em cima do telhado, com os cadarços entrelaçados na mais austera forma de um nó cego.
Não demorou e apareceu a dona da obra: a pequena arquiteta dos grandes malfeitos, que corria de um lado pro outro, enquanto ria da minha cara.
Com o incidente, liguei o alerta. Mas jamais pude imaginar outra investida bem na hora do almoço. Morria de fome após a ingrata jornada dos sapatos, e servi-me da carne seca do peru, acompanhada de arroz e farofa. Com entusiasmo, levei a refeição árida de uma só vez à boca. E pareceu que o próprio sertão nordestino havia parado na minha garganta.
Por puro instinto, lancei mão ao copo mais próximo, virei o suco de frutas goela abaixo e, pro meu total desespero, senti as minhas papilas serem devastadas por traços de um doce muito doce demais. Tudo só restou entendido quando notei que havia um recipiente ao lado da criança endiabrada, cujo líquido encontrava-se à metade. Era adoçante. A outra metade estava no meu copo.
Tendo ingerido um litro d’água, eu lia o jornal no celular, enquanto lutava para afastar os pensamentos infanticidas que me vinham à mente. E a peste se aproximava de novo, trazendo agora um Harry Potter às mãos.
Ao que parecia conhecer o meu ponto fraco, mostrou-me o livro. Bobeei por um segundo, e advinha? Meu celular desbloqueado era tomado das minhas mãos. Mais uma vez cai no conto de vigário.
Ora debaixo da mesa, ora em cima da cama e em todos os cantos ao mesmo tempo, aquele projeto de poltergeist devassava, em alto e bom som, a minha privacidade no WhatsApp. Todo mundo soube então de uma amiga cujo nome julgaram suspeito — Charlene. E a travessura da menina-monstro quase custou-me a vida e a namorada.
No outro dia, de manhã cedinho, deixei a porta entreaberta. Eu esperava por ela. E não precisei esperar tanto. Pois do lado de fora, num canto escuro, logo a vi entrando no quarto com um copo d’água. Era óbvio o plano: acordar-me com um banho gelado.
Óbvio a tal ponto que não funcionou. Pois deitado na cama não era eu. Eram apenas travesseiros embrulhados na coberta, onde dormia o corpo de um homem de plumas, que jamais acordou, embora ficasse encharcado.
O melhor foi a cara da diabinha sem rabo e sem tridente, que aprendeu desde cedo o gosto amargo da decepção. Mas é só beber suco de frutas que passa. E de repente, um susto: ouviu-se a porta fechar. E o trinco girou, trancando a fera lá dentro. Que pena, devia ser o vento. O vento de vingança.
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