É, a vida tem suas ironias. E ainda bem que a gente as entende e tem a chance de mudar.
A gente fica doido para fazer 18 anos, tirar carteira de habilitação e ter o carro próprio. Com minha geração foi assim.
Ter carteira era sinônimo de liberdade e de inserção no mundo dos adultos. Afortunada que sou, consegui minha habilitação ainda aos 18 anos (sim! acabei de renovar o documento pela quarta vez e celebro 20 anos de liberdade e “adultice”).
O Pálio vermelho, de segunda mão, veio logo em seguida, dado de presente por meu pai para mim e meu irmão gêmeo, que dividíamos cronometradamente conforme os dias da semana.
E assim foi… Dentro de Fiats, Fords, Volks, Nissans e Hondas, a vida seguiu seu script: universidade, formatura, trabalho, casamento, filho, até que… veio o divórcio.
E neste momento, que é um pequeno abalo sísmico na estabilidade da história e na certezas da vida, e dentre os inúmeros questionamentos que a gente faz sobre os valores que temos e sobre a maneira que a gente vive, eu me questionei sobre a necessidade de se ter um carro.
De início, fiquei reticente, imaginei que seria muito difícil me adaptar a falta de independência que o veículo permitia.
E faz conta para cá, aperta o cinto para lá, porque a perda financeira de um divórcio, diante das perdas subjetivas, é a menor que se tem, mas ela existe e se faz presente na concretude do saldo da conta bancária.
A mudança de casa me trouxe para mais perto do trabalho e da escola da filha. Pronto: o carro repousava placidamente, de segunda a sexta, na garagem do prédio.
Só saía para passear aos sábados e domingos. Daí não teve jeito, sem mais hesitar, decidi e vendi o carro no piscar de um fim de semana. Apliquei a grana. E lá se vão quase dois anos (1 ano e 10 meses para ser bem precisa).
Passei a andar mais a pé, de táxi, uber e até de patinete. A verdade é que nos dias de hoje, a gente faz qualquer coisa com um smartphone na mão: desloca-se para qualquer canto, pede delivery de restaurante, supermercado, farmácia, floricultura, pet shop e o que mais a imaginação quiser.
Troquei a bolsa a tiracolo pela mochila nas costas. Substitui o sapato de salto pelos confortáveis tênis. Aumentei meu nível de atividade física.
Geralmente, minha média mínima de caminhada diária é cerca de 5 km ou aproximadamente 7 mil passos (o smartphone faz a conta e não me deixa abandonar a parte obsessiva do meu caráter).
Descobri que, nas viagem, posso experimentar um modelo diferente de cada vez, alugando o carro conforme o tipo de estrada e também do meu humor.
Posso ir também de ônibus, como fazíamos antigamente (minha filha tem 9 anos e acabou de fazer sua primeira viagem de ônibus interestadual. Não preciso nem dizer que ela amou).
Aprendi que tem sempre alguém indo para suas bandas e também sempre há um amigo bem intencionado disposto a lhe oferecer carona e um dedinho de prosa.
Hoje experimento a cidade de um jeito de diferente. Sinto o sol, o vento, a chuva, os cheiros.
Vejo pedestres, cachorros, garis, poças d’água, comércios que sempre estiveram ali, mas não os enxergava através da película negra do vidro do carro.
Gosto da sensação de saber que estou contribuindo para o meio ambiente e para o trânsito da minha cidade.
E o que eu imaginava ser um suplício, virou diversão, economia, compartilhamento, sustentabilidade e também a tal liberdade!
Sim, ela sempre esteve comigo. Porém, agora ela era mais “arrojada” e moderna, com toques de leveza.
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Muito bom! Texto moderno e libertário.
É bom também saber que, diferentemente das gerações passadas, agora começam a se destacar jovens que não querem o carro próprio, que descobriram que ele não vale a pena.