Noite Passada em Soho não tem apenas uma ótima trilha sonora

Bebendo na fonte dos grandes mestres do policial noir, como Hammett ou Chandler, mas misturando um toque sobrenatural à Richard Matheson, o diretor e roteirista Edgar Wright criou uma obra interessante, inventiva e cativante. Noite Passada em Soho (Last Night in Soho, 2021) nos apresenta a uma história de mistério e usa o talento de Anya Taylor-Joy, provavelmente a atriz em maior evidência no momento, para contá-la.

Responsável por uma trilogia bem engraçada iniciada com Todo Mundo Quase Morto (Shawn of the Dead, 2004), Wright muda o tom totalmente com a trama de Eloise (Thomasin McKenzie, de Jojo Rabbit, 2019), uma garota do interior que se vê realizando um sonho ao se mudar para Londres para estudar moda. A avó da garota vê essa mudança com receio por ter perdido a filha, que não aguentou a pressão da capital e tirou a própria vida. E volta e meia a falecida aparece para Eloise, mantendo um contato entre os dois mundos.

Em Londres, Eloise encontra colegas de moradia não muito agradáveis e decide alugar um quarto no casarão de uma senhora (Diana Rigg, de Game of Thrones, em seu último papel). Lá, à noite, começa a ter visões que se confundem com a realidade dela. Ela vê uma garota da década de 60, Sandie (Taylor-Joy, de O Gambito da Rainha), que tem o sonho de ser uma cantora e está perto de realizá-lo ao conhecer o agente Jack (Matt Smith, de O Que Ficou Para Trás, 2020). A partir daí, Eloise vai se envolvendo com essas figuras, que se tornam cada vez mais vívidas.

O público fica em suspenso, não entendendo exatamente o que está acontecendo, assim como a protagonista, e o roteiro (coescrito com Krysty Wilson-Cairns, de 1917, 2019) é habilidoso em amarrar tudo ao final. Muitas pistas são dadas, mas só fazem sentido ao final, que é bem coerente com tudo o que foi apresentado até então. A recriação dos anos 60 é impressionante, com carros e casas de shows que nos transportam diretamente para a época. Os figurinos, penteados e maquiagens (principalmente da linda Taylor-Joy) são impecáveis, assim como a atuação de todo o elenco. Temos ainda a participação sempre interessante do veterano Terence Stamp (de Mistério no Mediterrâneo, 2019), além de uma ponta de Sam Claflin (de Peaky Blinders).

Um ponto fortíssimo de Noite Passada em Soho é a trilha sonora e a forma como ela se mistura e ajuda a contar a história. Hora ouvimos músicas fantásticas que marcaram uma época, como Cilla Black e sua You’re My World ou os Kinks, de Waterloo Sunset, ou mesmo James Ray com a versão original de Got My Mind Set On You, e hora tocando outras que têm tudo a ver com o que está acontecendo, como Eloise, de Barry Ryan, ou Puppet on a String, de Sandie Shaw. São vários artistas excelentes que contribuem com o filme, como já é costume de Wright, que parece ter um vasto conhecimento musical. Isso, além da trilha original de Steven Price, parceiro habitual do diretor (como de Em Ritmo de Fuga, 2017).

É até comum ver filmes ruins usarem canções clássicas numa tentativa de ganhar o público – o melhor exemplo recente é o horrendo Esquadrão Suicida de 2016. O próprio Baby Driver (Em Ritmo de Fuga), de Wright, acaba servindo a essa regra. Não é o caso de Noite Passada em Soho, que é bem escrito, montado, produzido e atuado. As músicas são a cereja de um bolo saboroso, cujas quase duas horas passam rápido e deixam uma vontade de continuarmos naquele mundo. E a carreira de Taylor-Joy segue em alta, cheia de acertos, aqui abrindo caminho para a também ótima McKenzie.

As músicas, Taylor-Joy e McKenzie são os destaques do longa

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Faroeste Ataque dos Cães desconstrói o mito do caubói

A premiada diretora e roteirista Jane Campion (de O Piano, 1994) partiu para um faroeste e realizou uma obra que, ao mesmo tempo que dá gás ao gênero, o desconstrói um pouco. Ataque dos Cães (The Power of the Dog, 2021), que tem seu título metafórico retirado de um salmo bíblico, é protagonizado por uma dupla improvável: um caubói bronco e violento e um jovem sensível atacado por todos por seu jeito afeminado. Com esses dois tipos, Campion brinca com arquétipos e revela que tem muito mais por trás de uma trama aparentemente simples.

Os irmãos Burbank conseguiram atingir um certo poder econômico na Montana de 1925 e cuidam uma grande fazenda e um numeroso rebanho. Mas são muito diferentes entre si: enquanto George (Jesse Plemons, de Jungle Cruise, 2021) é quieto e respeitoso, cuidando da parte financeira dos negócios, Phil (Benedict Cumberbatch, o Doutor Estranho da Marvel) lidera os homens exercendo um misto de respeito e medo. Ele é o típico machão das histórias da conquista do oeste, alimentando sempre que pode essa aura de homem forte que não abaixa a cabeça para ninguém.

No dia em que os Burbank e sua equipe param para comer e descansar numa pousada de beira de estrada, George se apaixona pela viúva que cuida do lugar (Kirsten Dunst, de O Estranho Que Nós Amamos, 2017) e eles acabam se casando. Junto com ela vem o filho (Kodi Smit-McPhee, a versão mais jovem do Noturno, dos X-Men), Peter, que não combina em nada com o cenário. Sempre impecável, com suas roupas claras, limpas e passadas, o jovem destoa dos demais e é alvo da zombaria geral. Mas é muito próximo da mãe, ainda mais depois da morte do pai.

A forma como Campion cria seus personagens e desenvolve as relações entre eles é poderosa, ainda que discreta. Nos detalhes, conhecemos cada um deles melhor e entendemos os rumos que as coisas estão tomando. A forma como o tal Bronco Henry é trabalhado é primorosa e revela muito das causas do comportamento de Phil. E Cumberbatch é eficiente como sempre, juntando carisma e ameaça num tom de voz intimidador. Plemons faz um ótimo contraponto, tímido e posicionado. Não temos estereótipos, mas figuras críveis, que poderiam realmente ter existido – e, em partes, de fato existiram, inspirando a ficção.

O livro homônimo relativamente autobiográfico em que o roteiro foi baseado, escrito por Thomas Savage, foi publicado em 1967, o que mostra que mexer com essas figuras icônicas não é algo novo. O Segredo de Brokeback Mountain (2005) é um filme que vem à mente durante a sessão de Ataque dos Cães, por terem alguns elementos em comum. O longa, que deu a Campion o prêmio de Melhor Diretora em Veneza no último mês de setembro, já está disponível na Netflix, depois de algumas exibições por cinemas do mundo. E, assim como o de Ang Lee, certamente terá destaque na próxima edição do Oscar.

Esses dois formam o cerne do filme

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Gavião Arqueiro é outro Vingador a ganhar série própria

Os Estúdios Marvel seguem se desculpando com os personagens que não conseguiram ganhar uma aventura solo. Enquanto a Viúva Negra teve seu merecido longa para o Cinema, outro dos Vingadores originais ganhou uma série no Disney+: Gavião Arqueiro (Hawkeye) já teve três de seus seis episódios divulgados. No universo televisivo da Marvel, Gavião parece ser a obra mais convencional, mostrando o dia a dia de um sujeito sem poderes sobre-humanos cuidando da família até que problemas batem à porta. A atração começa um pouco constrangida, com atuações ruins, mas vai acertando o tom.

Clint Barton (Jeremy Renner, de Te Peguei, 2018) busca passar mais tempo com os três filhos levando-os para apreciar o Natal em Nova York. Assistir ao musical dos Vingadores na Broadway é um pouco pesado, mas nada que uma árvore gigantesca devidamente decorada não resolva. Barton constantemente lembra da amiga Nat, a Viúva Negra, que faleceu em frente a ele. E há ainda uma parte obscura de seu passado a esconder, quando ele vestiu uma fantasia e foi às ruas eliminar mafiosos, ganhando a alcunha de Ronin. Dessa forma, ele exorcizou seus demônios e voltou à vida pacata no interior.

Quando tudo parecia em paz, Barton vê na televisão alguém agindo com as roupas de Ronin e precisa descobriu quem é o impostor. Paralelamente, conhecemos Kate Bishop (Haille Steinfeld, de Bumblebee, 2018), uma garota que fica órfã de pai no Ataque a Nova York (no primeiro Vingadores, de 2012) e passa a se dedicar a várias artes marciais, além do arco e flecha. Barton, claro, é o ídolo da menina, e o destino vai se encarregar de apresentar os dois. Outros elementos vão sendo trazidos à mistura e a dose de ação fica sempre no alto.

Sempre com pouco destaque nos filmes do supergrupo, o Gavião Arqueiro é o personagem mais reservado, que por anos guardou o segredo de ter uma família numa cidadezinha. Essa é uma oportunidade para Renner explorar as possibilidades de Barton, que lida com uma vida bem mundana ao mesmo tempo em que sente o luto pela amiga e ainda carrega o peso de várias mortes nas costas. E temos a introdução de Steinfeld, uma ótima atriz que encaixou muito bem com Bishop, personagem criada em 2005 nos quadrinhos cujo futuro os fãs conhecem bem.

Complementando o elenco, em papéis bem relevantes, temos Vera Farmiga e Tony Dalton como um casal cheio de segredos. A ótima atriz (da trilogia Invocação do Mal) faz a mãe de Kate e deve ser bem explorada nos próximos episódios, assim como Dalton (de Better Call Saul), que acabará se tornando outra figura dos quadrinhos. Brian D’Arcy James (de Spotlight, 2016) é o falecido pai de Kate, que volta e meia faz aparições. E Linda Cardellini volta a viver a esposa de Barton. Outra conhecida do público aparece também, mas é melhor guardar a surpresa.

Avançando a Fase 4 do MCU, Gavião Arqueiro nos apresenta a alguns personagens que vieram para ficar, além de dar mais base para outros, como o próprio Clint. Tecnicamente, a série soa genérica, com a “cara Marvel” que muitos filmes desse universo têm. A trilha de Christophe Beck passa um pouco batida, é menos memorável que a de WandaVision, por exemplo, e só conta com algumas músicas de Natal. Ao final dos seis episódios, teremos a noção exata do impacto da série no MCU. Por enquanto, ela segue divertida e isso é suficiente.

Farmiga e Dalton fazem outros dois personagens recorrentes na série

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Tom Hanks é Finch em simpática ficção-científica

Três personagens em uma viagem pelos Estados Unidos aprendendo o que é amizade em um futuro pós-apocalíptico. Essa é a descrição mais objetiva de Finch (2021), longa da Apple TV que traz Tom Hanks à frente do elenco. Ou como o elenco. Humano, ao menos, já que o trio é completo por um cachorro e um robô. Mais uma vez, cabe a Hanks segurar um filme nas costas, já que o sucesso de Finch depende quase que exclusivamente do ator. Da última vez que vimos algo assim, havia uma bola de vôlei numa praia. E Hanks foi indicado ao Oscar.

Na direção do longa está o inglês Miguel Sapochnik, que comandou seis episódios de Game of Thrones, entre outras séries, e conta com dois roteiristas de primeira viagem, Craig Luck e Ivor Powell. Mas, ao contrário de Luck, com pequenos trabalhos como assistente de produção, Powell foi produtor de clássicos de Ridley Scott (Os Duelistas, Alien e Blade Runner). E Finch não deixa de ser ficção-científica, claro, mas é um mundo desgraçado até razoável. Tirando que a camada de ozônio foi pro espaço e o Sol queima no menor contato.

Quem está acostumado com o futuro como normalmente é mostrado no Cinema, com carros voadores e robôs humanóides, pode achar Finch um tanto anticlimático. Não há explosões ou batalhas. O vilão não é um zumbi ou um conglomerado milionário. O vilão é o humano que quer os recursos para si. Ou mesmo o Sol, capaz de causar um câncer de pele em segundos. Na falta de espetáculos pirotécnicos, o peso cai sobre Hanks, que nos leva com ele pelas estradas americanas. Se não é um prodígio da inventividade, Finch ao menos nos apresenta a outra grande performance do ator.

A voz e a personalidade do robô são cortesia do ator Caleb Landry Jones

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Alerta Vermelho junta três grandes estrelas na Netflix

Nada melhor, para chamar a atenção geral, que reunir não dois, mas três nomes de destaque do cinemão norte-americano atual. A Netflix escalou Dwayne Johnson, Gal Gadot e Ryan Reynolds para sua nova aventura milionária advinda da clássica escola de Indiana Jones. Os três intérpretes de personagens da DC Comics (Adão Negro, Mulher-Maravilha e Lanterna Verde, respectivamente) são a razão do charme de Alerta Vermelho (Red Notice, 2021).

Com uma descoberta arqueológica como pano de fundo, o diretor e roteirista Rawson Marshall Thurber mistura as duas coisas que parece gostar: ação (como Arranha-Céu, 2018) e comédia (a exemplo de Família do Bagulho, 2013). Trabalhando com The Rock pela terceira vez, ele confia no carisma do astro o suficiente para colocá-lo como escada para as piadas de Reynolds, que a cada minuto lembra seu irônico Deadpool. E, como nas grandes aventuras icônicas, sempre tem uma bela mulher cheia de segredos, papel que cabe a Gadot.

Quando o longa começa, descobrimos que um agente do FBI (Johnson) vem perseguindo um habilidoso ladrão (Reynolds) há bastante tempo e uma dica recebida aponta exatamente onde prender o sujeito. O problema é que essa dica vem de outra figura procurada, conhecida como O Bispo (Gadot). Com uma inspirada trilha sonora de Steve Jablonsky (de Bloodshot, 2020) e passeando por alguns dos lugares mais interessantes do mundo, fica fácil agradar.

A verdade é que Alerta Vermelho funciona bem pela força de seus protagonistas – que ganharam salários recordes nessa que se tornou a produção mais cara distribuída pela Netflix. Com gente menos inspirada nos papéis principais, a relevância não teria chegado à metade. Enquanto os novos episódios das franquias dos quadrinhos não estreiam, eles aproveitam para abrir um novo filão. Espere ver um Alerta Vermelho 2 em breve, talvez levando a ação mais longe, com mais estrelas de Hollywood. E tem chance de ser tão divertido quanto esse primeiro.

Thurber orienta seu elenco devidamente protegido contra a Covid-19

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Ted Lasso traz uma dose exagerada e necessária de otimismo

Quem assiste aos primeiros episódios de Ted Lasso pode pensar que se trata de uma obra que busca fazer as (boas e…) velhas piadas sobre os diferentes costumes de estadunidenses e britânicos. Afinal, a série conta a história de um técnico de futebol americano, nos EUA, contratado para treinar um time de futebol (esse que nós mais conhecemos) na Inglaterra.

A série nasceu depois de um conjunto de comerciais estrelados por Jason Sudeikis (de Colossal, 2016) para a cobertura da NBC Sports da Premier League, em que o ator surgiu pela primeira vez como o técnico de futebol americano “descobrindo” outro esporte com o mesmo nome — pelo menos para o resto do mundo, já que nos EUA soccer seria o “nosso” futebol e football o “jogado nos EUA”.

Muito além de piadas com café e chá, sentido de direção, as regras dos jogos e referências pops de culturas diferentes, Ted Lasso é sobre ter otimismo, algo que cai muito bem nesses dias, mesmo que de forma exagerada. Quando o técnico desembarca em solo londrino com o seu braço direito, Técnico Beard (Brendan Hunt), começa uma série de situações que seriam típicas nesse tipo de contexto, ou seja: as piadas citadas acima.

Mas basta Ted começar a se relacionar com o elenco do modesto AFC Richmond, time fictício da Premier League (a primeira divisão da Inglaterra), e com a dona do clube, Rebecca Welton (Hannah Waddingham, de Sex Education) para começarmos a ver que não se trata de uma série sobre esses elementos ou, muito menos, de futebol.

As duas temporadas até então disponíveis da série da Apple TV divertem e emocionam na mesma dose, fugindo do tradicional humor pastelão de muitas sitcoms americanas, mas não sendo exatamente ácida como as séries inglesas. Um grande ponto de destaque em Ted Lasso é a riqueza de seus personagens. Tirando alguns jogadores do elenco que fazem participações pontuais, todos os integrantes da trama têm a devida atenção e profundidade.

O técnico que dá nome à série pode até ser o vórtice de alguns eventos dos episódios, mas está longe de ser essencial a todos os acontecimentos. A amizade de Rebecca com Keeley (Juno Temple, de Malévola, 2014 e 2019) independe dele, por exemplo, e essa relação é uma das forças da série e protagonista de um dos momentos mais marcantes de toda a segunda temporada. Personagens como o veterano jogador Roy Kent (Brett Goldstein) também possuem personalidade forte e muito própria, diferente do ingênuo roupeiro Nathan (Nick Mohammed), que consegue mostrar pouco de si, só que ganha outros contornos graças à amizade com Ted.

O futebol, presente, mas nunca efetivamente um protagonista, parece ser desconstruído, por mais que cenas de vestiário e o ego de jogadores — sobretudo de Jamie Tartt (Phil Dunster), estrelinha e artilheiro do time — estejam ali. Na série, as amizades, o espírito de equipe e a relação dos jogadores com sua própria história e o clube acabam sendo mais importantes do que o próprio resultado, mera consequência de tudo isso — mesmo que, nem sempre, a vitória venha. Algo que, possivelmente, não acontece no mundo real.

Cada pessoa na série tem um papel fundamental para a trama como um todo. No fim, o conjunto de boas histórias que cada personagem carrega, contadas de maneira dosadas, mas bem aprofundadas, mostram que o nome da série ser Ted Lasso é quase injusto. Bem como alguém pensar que a série é sobre futebol. Pode até ter o esporte mais popular do mundo como plano de base para o enredo, e até render boas participações, como dos ex-jogadores Thierry Henry e Gary Lineker.

No fim, é uma série sobre “acreditar”, palavra fundamental para a atração e para os dias de hoje. Se você assistir a Ted Lasso e ainda acreditar que a dose de otimismo é exagerada, tente se lembrar do que estamos passando atualmente. Talvez nem seja suficiente.

A série foi uma das maiores vencedoras do Emmy 2021

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Querido Evan Hansen é mais Broadway em Hollywood

Um grande número de musicais tem chegado ao Cinema, e boa parte é baseada em shows do teatro. No entanto, é bom ressaltar que sucesso em um meio não é garantia no outro. Mesmo que se use o mesmo roteiro, as mesmas músicas ou até o mesmo protagonista. Parece que os responsáveis por Querido Evan Hansen (Dear Evan Hansen, 2021) achavam que o jogo estava ganho. E se surpreenderam com o fracasso da adaptação.

Vencedora de vários prêmios, entre eles o Tony, o Grammy e o Emmy, a peça acompanha um adolescente com um caso sério de ansiedade que é aconselhado pelo psicólogo a escrever cartas para ele mesmo e, assim, tentar encarar a rotina mais tranquilamente. Sempre começando com “Querido Evan Hansen…”, ele busca escrever mensagens positivas, mas nem sempre o efeito é o desejado.

Em um dia qualquer, acontece um incidente: um colega tido como esquisito e igualmente sem amigos pega a carta de Evan na impressora e, algum tempo depois, comete suicídio. A carta é interpretada como uma mensagem de despedida a um amigo, já que todos acreditam que Connor, o esquisito, a teria escrito para Evan. O jovem é então recebido na família do falecido e as coisas tomam uma proporção louca.

Se levando muito a sério, o filme fica num limbo perigoso. Chama a atenção para problemas psicológicos que muitos têm, mas coloca uma dessas pessoas como um psicopata que se aproveita de uma situação trágica para realizar uma fantasia romântica. Evan é uma criatura odiosa por várias razões, inclusive por tratar mal a mãe que está sempre se matando de trabalhar para poder prover para os dois. Ele mente para literalmente todo mundo. No filme, é tratado como um coitadinho.

Na comédia de humor negro O Melhor Pai do Mundo (World’s Greatest Dad, 2009), algo parecido acontece, mas o ângulo abordado é cômico e nunca busca desculpar o comportamento terrível do falecido, que era um babaca. Robin Williams era um pai que tentava limpar a barra do filho, que morreu acidentalmente numa tentativa de sentir prazer sexual.

Como o protagonista, desde a peça de 2015, temos o mesmo Ben Platt (de A Escolha Perfeita, 2012 e 2015), que já está fisicamente bem mais velho e fica parecendo um policial infiltrado na escola, quase como em Anjos da Lei. Mas Platt e sua peruca acabam sendo o menor dos problemas de Querido Evan Hansen. A música que Evan canta como se fosse o falecido falando da irmã parece algo saído de Game of Thrones, bem incestuoso. E a relação dele com Connor logo toma uma conotação gay, que vira piada no filme mas não deixa de ser real. Logo, parece que Evan deseja os dois irmãos, o que não era a intenção.

Como temos Stephen Chbosky na direção, que assina o ótimo As Vantagens de Ser Invisível (The Perks of Being a Wallflower, 2012), esperamos por algo num rumo parecido, com uma sensibilidade no mesmo tom. Quando o filme começa e Evan entra na escola cantando, percebemos o quanto ele é invisível para os colegas. Nem os populares o atacam, como costuma acontecer. Os atletas, que têm cara de terem trinta anos, como os atores de Riverdale, o ignoram. Ou, no máximo, têm nojo dele.

Alguns clichês aparecem, mas são bem trabalhados. Evan se interessa não pela líder de torcida, mas pela menina da banda. A presença de Nik Dodani, o pretenso pegador de Atypical, como um homossexual popular, é uma brincadeira com a persona dele. Mas logo o filme coloca a culpa de Connor ser tão estranho na relação com os pais, como se quisesse ter uma explicação para o mal. Assim, o filme vai se alternando entre erros e acertos. A dinâmica entre Evan e a família Murphy é complexa, já que um parece preencher um vazio no outro. E a personagem Alana (Amandla Stenberg, de Tudo e Todas as Coisas, 2017), a líder de turma, é das mais interessantes, disfarçando suas inseguranças com atividades extracurriculares.

Mas mesmo Alana sofre as consequências de um roteiro afobado (de Steven Levenson, de Fosse/Verdon) que aproveita mal as situações que cria. Se começa bem, com uma hora e meia de exibição, Querido Evan Hansen já rolou o barranco, levando a um final previsível, irritante e moralmente dúbio. Nem todos os talentos envolvidos salvam a produção, e até as músicas premiadas de Justin Paul e Benj Pasek (mesma dupla de La La Land, 2016, e O Rei do Show, 2017) ficam mal encaixadas e cansativas. O elenco, que traz gente do calibre de Julianne Moore, Amy Adams (as duas de A Mulher na Janela, 2021) e Kaitlyn Dever (de Inacreditável, 2019) é desperdiçado em personagens unidimensionais que só faltam descascar cebolas para fazer o público chorar.

Adams e Moore repetem a dobradinha de A Mulher na Janela em outro filme ruim

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Dexter volta à TV para mais uma temporada

Dexter Morgan está de volta. O psicopata amigo da vizinhança, agora devidamente estabelecido no interior do estado de Nova York, tem que se acostumar com um frio que nunca passou em Miami. E atende pelo nome Jim Lindsay, duas prováveis homenagens: ao escritor que criou o personagem, Jeff Lindsay, e ao criador da série que durou oito temporadas, James Manos, Jr. Com o produtor Clyde Phillips, responsável pelas quatro primeiras temporadas, novamente encarregado, Dexter: New Blood promete corrigir erros do passado. Ou, ao menos, deixar na cabeça dos fãs uma melhor impressão.

As quatro primeiras temporadas de Dexter, exatamente aquelas desenvolvidas por Phillips, são excelentes e respondem por todas as cenas e falas memoráveis da série. Da quinta à oitava, veiculada em 2013, foi só barranco abaixo, com um final melancólico e altamente criticado por todos que respiravam na época. O próprio astro da atração, Michael C. Hall, deu entrevistas deixando claro, com palavras brandas, que não havia ficado satisfeito com o destino de seu tão amado Dexter. E, por isso mesmo, ele topou voltar àquele universo. E porque Phillips estava envolvido, uma garantia de que o cânone seria recuperado.

No final da oitava temporada da série, com a irmã morta, o perito em criminalística que dava seus pulos como serial killer de malfeitores forja sua própria morte. Agora, já no interior de Nova York e atendendo em uma lojinha de pesca e caça, Jim Lindsay é o funcionário ideal e o vizinho perfeito, daquele tipo que é convidado para todos os eventos da cidadezinha. Como sempre teve uma ligação com a polícia, ele namora a delegada, que volta e meia tem que resolver mistérios na igreja ou separar rebanhos que se misturaram e evitar brigas.

Com tantas perdas, já que quase todos à sua volta morreram, era de se esperar que Dexter abandonasse o “código de Harry”, aquele que o pai adotivo o ensinou para que só matasse gente má. Misteriosamente, Dexter consegue passar esses anos todos sem matar ninguém. Talvez porque sua mente tenha substituído o passageiro sombrio, espécie de personalidade que o influenciava a matar, por sua irmã. Debra (vivida por Jennifer Carpenter) agora é quem conversa com Dexter. Ao invés de dar conselhos, como Harry (James Remar) fazia, ela o lembra constantemente da tragédia que ele causou e o mantém na linha.

Isso, até que um riquinho mimado e inconsequente (Steve M. Robertson) o perturba e faz com que Dexter vislumbre matar novamente. O gatilho para que tudo voltasse a ser como antes é bem fraco, mas esse foi apenas o primeiro episódio. O clima promete esquentar, mesmo em meio àquela neve, ainda mais com a chegada de personagens já conhecidos por nós. O estranho que se aproxima dele já desde o início é facilmente identificável e deve dar combustível para as novas tramas.

A nova apresentação dá a entender que New Blood é outra série, e não mais uma temporada de Dexter. A fotografia é bem-feita e nos ajuda a conhecer a atual morada do psicopata. Uma trilha que já começa com The Passenger (grande sacada!), de Iggy Pop, também agrada. Michael C. Hall conhece Dexter muito bem e o retorno ao personagem se deu com aparente facilidade. A narração irônica nos leva a crer que ele acredita estar em evolução, mas não sabemos se rumo a ser uma pessoa melhor ou um assassino mais habilidoso.

Os fãs devem ficar bem satisfeitos com as surpresas que Phillips guarda e os acenos nostálgicos que aparecem aqui e ali. Ele já disse, em entrevistas, que pensou primeiro no final dessa temporada para depois criar o começo. Desde o início, já tinha tudo pensado. Outro que volta é o diretor Marcos Siega, veterano da TV que comanda seis dos dez episódios. Tem tudo para acabar bem e redimir Dexter. Esta temporada é A temporada. Tem que ser.

Clancy Brown promete trazer problemas para Dexter nos próximos episódios

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Os Eternos são o novo supergrupo da Marvel no Cinema

A exemplo do que vimos em Shang-Chi e a Lenda dos Dez Anéis (Shang-Chi and the Legend of the Ten Rings, 2021), esta quarta fase do Universo Cinematográfico da Marvel está cada vez mais longe da realidade, mais fantasiosa. Chegou a vez de Eternos (Eternals, 2021), seres que vivem secretamente na Terra há milhares de anos para cumprir os desígnios de seu criador, um Celestial. Por essa rápida descrição, dá para perceber se tratar da obra mais viajada do MCU. E a culpa disso não é do filme, mas da fonte: os quadrinhos.

Criados em 1970 por Jack Kirby, os Eternos seguiam uma onda que estava popular nos livros de ficção-científica relacionados a deuses e ao espaço, muito desenvolvida pelo escritor Erich von Daniken. Teria a tecnologia da Terra bebido em águas alienígenas? Os Eternos teriam nos influenciado bastante desde o início dos tempos (os nossos), e percebemos isso por exemplo no mito grego de Ícaro – um dos principais Eternos chama-se Ikaris. Os gregos foram altamente influenciados por eles.

Essa influência já fura de cara o conceito inicial: fica claro que eles interagiram com os terráqueos em diversos momentos. E eles deveriam viver em segredo, aguardando as ordens do Celestial que os criou. A Segunda Guerra teria acontecido usando a tecnologia criada por eles e vários flashbacks mostram alguns deles convivendo com humanos. Thanos apagou metade da população e eles não fizeram nada a respeito para manterem o sigilo, e o filme volta e meia tenta justificar isso. Quando é conveniente, há interação. A regra é: não há regras.

Um universo de fantasia sempre deve deixar claras as suas regras e segui-las. Afinal, esse tipo de obra exige de seu consumidor um salto de fé, o que só é possível se, dentro daquela lógica, as coisas fizerem sentido. E essa falta de comprometimento com seus próprios parâmetros incomoda bastante ao longo da sessão de Eternos. E há outro problema: o filme é chato. Pura e simplesmente. Chloé Zhao, a premiada diretora do ótimo Nomadland (2020), está acostumada a dramas intimistas e tenta aqui misturar seu estilo à fórmula Marvel. O resultado é bem diferente do que nos acostumamos a ver, e isso não é necessariamente bom. A trilha e a fotografia são elementos positivos que chamam a atenção, mas não são suficientes.

Os Eternos foram inicialmente enviados à Terra para derrotar os Deviantes, criaturas monstruosas também criadas pelos Celestiais num experimento que deu errado. Eles acreditavam ter acabado com a ameaça há centenas de anos, mas permaneceram na Terra só para garantir (outro buraco no roteiro de Zhao e seus colaboradores). E não é que os monstros aparecem novamente para ameaçar a humanidade? Novos fatos vão sendo jogados na mistura enquanto todos os personagens são apresentados. Eles são muitos, superpoderosos, para os quais não damos a mínima.

O elenco de Eternos é de longe o mais diverso da Marvel, contando com atores de várias etnias. Entre os nomes mais famosos, temos Angelina Jolie (de Malévola: Dona do Mal, 2019), Salma Hayek (de Bliss, 2021), os irmãos em Game of Thrones, Richard Madden e Kit Harington, Kumail Nanjiani (de Um Crime para Dois, 2020), Brian Tyree Henry (de A Mulher na Janela, 2021) e Bill Skarsgård (o palhaço de It, que aqui aparece novamente disfarçado, como o deviante líder). Entre os menos conhecidos, destaque para Barry Keoghan (de O Cavaleiro Verde, 2021), Ma Dong-seok (ou Don Lee, de Invasão Zumbi, 2016), Lauren Ridloff (de The Walking Dead, que é surda como a personagem) e a jovem Lia McHugh (de O Chalé, 2019). Todos muito corretos, mas Jolie (abaixo) rouba as cenas em que aparece – mesmo que fiquemos sem entender direito o que se passa com a personagem. E o humor com Nanjiani é bem forçado.

À frente desse pessoal todo está Gemma Chan (de Podres de Ricos, 2018), como a Eterna que conduz a história e nos leva com ela. Ela é ótima e cumpre muito bem sua função. Só não entendemos por que contratar uma atriz que apareceu recentemente no MCU: ela é a Minn-Erva de Capitã Marvel (2019). Uma ligação entre as duas personagens parece fora de questão. Harington, com quem ela faz par, é um ator claramente mais importante que seu papel, o que deixa claro que aquilo está sendo apenas uma introdução, visando algo mais importante no futuro.

E este é outro problema de Eternos: o filme todo representa um meio do caminho entre produções mais importantes. Outros filmes da Marvel já foram criticados por isso, mas aqui a sensação fica bem palpável. E as duas cenas pós-créditos trazem surpresas calculadas para confundirem a cabeça dos espectadores, que serão obrigados a buscarem sites especializados em quadrinhos para descobrirem do que se trata. Essas cenas são trampolins para outros projetos vindouros que parecem ser mais relevantes. A exemplo de James Bond, os Eternos voltarão. Só não sabemos se em aventura própria ou pegando carona com outros medalhões melhor desenvolvidos.

Os atores e seus respectivos personagens nos quadrinhos

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Wagner Moura e Seu Jorge contam a história de Marighella

Um país que não conhece sua própria história está fadado a repeti-la. E o Cinema pode ser uma ferramenta poderosa nesse sentido. Principalmente ao contar uma história que permanece tão atual. A exemplo de Lamarca e outras combativas figuras brasileiras, chega a vez do baiano Carlos Marighella ganhar sua cinebiografia. O filme é de 2019, mas a pandemia e intrigas políticas fizeram com que ele só estreasse agora.

Escritor, político e poeta, Marighella entrou para a guerrilha urbana contra a ditadura brasileira e chegou a ser considerado o inimigo número um pelo governo. Uma imprensa em parte estrangulada, em parte conivente não fazia chegar aos cidadãos a extensão da tragédia que os militares trouxeram ao Brasil ao darem um golpe de estado. Juntando-se a diversos patriotas com valores similares, muitos deles estudantes, Marighella passou a acreditar que protestos e manifestações não levariam a nada. Mesmo porque qualquer movimento social era violentamente silenciado e diariamente opositores ao governo desapareciam. Expressões como “foi pro saco” são dessa época.

Hoje, já se conhece boa parte dos crimes cometidos por autoridades do período, como assassinatos e torturas em “departamentos de investigação”. O último bastião das “viúvas da ditadura”, que é a afirmação de que não houve corrupção sob a gestão dos sanguinários militares, caiu por terra faz tempo. À luz dos fatos, é preciso ser muito canalha para colocar panos quentes em tudo o que aconteceu. E a obra não faz vista grossa, mostrando boa parte desse horror.

 

É nesse contexto que o deputado Marighella passa à clandestinidade e passa a aplicar a política do “olho por olho”. A polícia atacava guerrilheiros, eles atacavam de volta. As práticas do grupo podem ser discutíveis, mas o fato é que algo precisava ser feito. O ponto de vista da época é mostrado claramente e o filme acompanha não só o protagonista, mas os personagens principais daquela tragédia. Algo como feito brilhantemente em O Que É Isso, Companheiro? (1997), filme com o qual esse dialoga.

Premiado por diversos de seus trabalhos como ator, o baiano Wagner Moura (de Wasp Network, 2019) faz sua estreia na direção e mostra que aprendeu bem o ofício com os cineastas com quem trabalhou. Muito elogiado por seu elenco e equipe, Moura demonstra segurança e escolheu um assunto que faz muito sentido hoje. Claro opositor do governo brasileiro atual, o diretor faz paralelos essenciais e contundentes entre os dois períodos, ambos marcados pela violência, corrupção e estupidez.

À frente do elenco, Seu Jorge vive o líder guerrilheiro (ambos acima). Dando seus pulos no Cinema desde que estreou com Cidade de Deus, em 2002, o cantor cumpre bem o seu papel, tentando dar leveza a diálogos que, em alguns momentos, parecem discursos. Entre nomes mais e menos famosos, temos Luiz Carlos Vasconcelos, Adriana Esteves, Herson Capri, Humberto Carrão e Bruno Gagliasso, único prejudicado pelo personagem estereotipado. O delegado Lúcio parece ser um composto de figuras que tocaram o terror durante a ditadura, sendo o mais notório o delegado Sérgio Fleury. Se dessem profundidade a ele, poderia parecer uma tentativa de humanizar um monstro. Então, o roteiro cai na armadilha oposta.

Baseado no livro de Mário Magalhães, o roteiro de Marighella, escrito por Moura e Felipe Braga (de Trash, 2014), cobre bem os principais pontos que se espera da vida do biografado. Algumas críticas dizem que não há X ou Y, ou que não se aprofunda em algum. O que se vê é um filme que não transforma Marighella num herói romântico. Pelo contrário, ele é passível de erros, excessos, e descontrai o ambiente quando possível. Uma figura muito necessária em tempos em que um grupo faz o que quer, comprando apoios de parlamentares que estão à venda, calando outros e, novamente, contando com a conivência de boa parte da classe militar, que deveria zelar pelo país.

Wagner Moura faz uma bela estreia e aproveita para criticar o governo

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