Bebendo na fonte dos grandes mestres do policial noir, como Hammett ou Chandler, mas misturando um toque sobrenatural à Richard Matheson, o diretor e roteirista Edgar Wright criou uma obra interessante, inventiva e cativante. Noite Passada em Soho (Last Night in Soho, 2021) nos apresenta a uma história de mistério e usa o talento de Anya Taylor-Joy, provavelmente a atriz em maior evidência no momento, para contá-la.
Responsável por uma trilogia bem engraçada iniciada com Todo Mundo Quase Morto (Shawn of the Dead, 2004), Wright muda o tom totalmente com a trama de Eloise (Thomasin McKenzie, de Jojo Rabbit, 2019), uma garota do interior que se vê realizando um sonho ao se mudar para Londres para estudar moda. A avó da garota vê essa mudança com receio por ter perdido a filha, que não aguentou a pressão da capital e tirou a própria vida. E volta e meia a falecida aparece para Eloise, mantendo um contato entre os dois mundos.
Em Londres, Eloise encontra colegas de moradia não muito agradáveis e decide alugar um quarto no casarão de uma senhora (Diana Rigg, de Game of Thrones, em seu último papel). Lá, à noite, começa a ter visões que se confundem com a realidade dela. Ela vê uma garota da década de 60, Sandie (Taylor-Joy, de O Gambito da Rainha), que tem o sonho de ser uma cantora e está perto de realizá-lo ao conhecer o agente Jack (Matt Smith, de O Que Ficou Para Trás, 2020). A partir daí, Eloise vai se envolvendo com essas figuras, que se tornam cada vez mais vívidas.
O público fica em suspenso, não entendendo exatamente o que está acontecendo, assim como a protagonista, e o roteiro (coescrito com Krysty Wilson-Cairns, de 1917, 2019) é habilidoso em amarrar tudo ao final. Muitas pistas são dadas, mas só fazem sentido ao final, que é bem coerente com tudo o que foi apresentado até então. A recriação dos anos 60 é impressionante, com carros e casas de shows que nos transportam diretamente para a época. Os figurinos, penteados e maquiagens (principalmente da linda Taylor-Joy) são impecáveis, assim como a atuação de todo o elenco. Temos ainda a participação sempre interessante do veterano Terence Stamp (de Mistério no Mediterrâneo, 2019), além de uma ponta de Sam Claflin (de Peaky Blinders).
Um ponto fortíssimo de Noite Passada em Soho é a trilha sonora e a forma como ela se mistura e ajuda a contar a história. Hora ouvimos músicas fantásticas que marcaram uma época, como Cilla Black e sua You’re My World ou os Kinks, de Waterloo Sunset, ou mesmo James Ray com a versão original de Got My Mind Set On You, e hora tocando outras que têm tudo a ver com o que está acontecendo, como Eloise, de Barry Ryan, ou Puppet on a String, de Sandie Shaw. São vários artistas excelentes que contribuem com o filme, como já é costume de Wright, que parece ter um vasto conhecimento musical. Isso, além da trilha original de Steven Price, parceiro habitual do diretor (como de Em Ritmo de Fuga, 2017).
É até comum ver filmes ruins usarem canções clássicas numa tentativa de ganhar o público – o melhor exemplo recente é o horrendo Esquadrão Suicida de 2016. O próprio Baby Driver (Em Ritmo de Fuga), de Wright, acaba servindo a essa regra. Não é o caso de Noite Passada em Soho, que é bem escrito, montado, produzido e atuado. As músicas são a cereja de um bolo saboroso, cujas quase duas horas passam rápido e deixam uma vontade de continuarmos naquele mundo. E a carreira de Taylor-Joy segue em alta, cheia de acertos, aqui abrindo caminho para a também ótima McKenzie.