Toda uma trilogia de Star Wars foi criada para contar a infância e adolescência de Darth Vader, e o resultado não foi dos melhores. Hannibal Lecter teve sua maldade explicada num longa sofrível. Talvez o Coringa tenha sido uma exceção numa regra que vem valendo há tempos. E, ainda assim, porque os quadrinhos permitem várias interpretações.
Se tem um filão no Cinema e na TV que não deveria ter dado frutos é o do filme/série de origem. Conhecemos um personagem maligno, sedutor ou enigmático de alguma forma, e anos depois alguém resolve contar como ele ou ela chegou lá. É preciso traçar um passado cuidadoso que acabe encontrando-se com a obra canônica de forma harmônica.
Pois chegou a vez da Enfermeira Ratched ter sua vida esmiuçada. “Quem?”, você pode estar pensando. Um Estranho no Ninho (One Flew Over the Cukoo’s Nest) é um dos grandes filmes de 1975 e foi apenas o segundo na história (Lecter está no terceiro) a ganhar os cinco Oscars considerados principais: Melhor Filme (para os produtores Saul Zaentz e Michael Douglas), Melhor Ator (para Jack Nicholson), Melhor Roteiro (no caso, adaptado, para Lawrence Hauben e Bo Goldman), Melhor Diretor (para o grande Milos Forman) e Melhor Atriz (para Louise Fletcher).
Na história (baseada no livro de Ken Kesey), o criminoso vivido por Nicholson consegue ser declarado insano na esperança de ter uma vida mansa no hospício, melhor do que na prisão. E, de fato, ele chega mobilizando os colegas, que são mesmo doentes, a se rebelarem contra o pulso de ferro da enfermeira-chefe. Mas McMurphy encontrou em Mildred Ratched uma oponente formidável e o duelo entre Nicholson e Fletcher é bonito de se ver. Não a toa, ambos foram muito premiados.
Décadas mais tarde, o produtor Ryan Murphy voltou sua atenção para a personagem e conseguiu sinal verde da Netflix para contar a vida pregressa dela. Depois de The Politician e Hollywood, Ratched é a nova parceria entre os dois nomes de peso. Ao lado de Evan Romansky, Murphy voltou aos anos 40 para nos revelar como a icônica enfermeira chegou à situação na qual a encontramos nos anos 60 de Um Estranho no Ninho.
Parecendo aproveitar cenários e figurinos de Feud e Hollywood, a suntuosa produção traz Sarah Paulson como uma Mildred mais nova, sempre muito elegante e guardando planos que logo nos são revelados. E é rápido mesmo! Velha conhecida de Murphy, das séries American Horror Story e American Crime Story, a atriz está sempre muito acima da média, fazendo o melhor com o que o roteiro lhe dá. O que complica seu trabalho é o tom da história, que insiste em mudar bruscamente.
Digamos que alguém estivesse interessado em conhecer o passado de Ratched. Como retratada por Fletcher, a personagem é extremamente calculista, econômica em seus movimentos e diálogos. Ela inclusive aparece pouco no filme, mas tem uma presença magnética que atrai todos os olhares. Tornar uma figura como essa protagonista já desperdiça seus traços mais marcantes. E o desenvolvimento exigido de Paulson fica sem parâmetro ou referência. Não conseguimos enxergar as duas personagens como uma só.
Quando a série começa, Ratched corresponde ao que podemos esperar: uma pessoa sombria, que usa sorrisos quando necessário e só se aproxima de alguém quando realmente precisa. A manipulação logo começa, com Ratched jogando com as pessoas para atingir seus interesses. Mas em pouco tempo descobrimos qualquer segredo que ela pudesse esconder e ela parece baixar a guarda, criando sentimentos e emoções em determinadas situações.
É nesse ponto que o roteiro, de responsabilidade de Murphy, Romansky, Ian Brennan e Jennifer Salt, derruba o trabalho de Paulson. Ela não consegue seguir um caminho, e isso dá a impressão de que não havia um planejamento – por mais que houvesse. A atriz entrou por poucos minutos em The Post (2017) e, em apenas uma cena, mostrou uma interpretação que profissionais passam a vida tentando alcançar. Fica muito claro que sua missão foi cumprida.
Vivendo o assassino Edmund Tolleson, Finn Wittrock (também de AHS e ACS – abaixo) se sai bem porque, além de ser um bom ator, não tem nenhuma expectativa prévia a cumprir. Seu personagem é novo e não sabemos nada dele. E assim é com os demais, todos criados especialmente para a série. Como de costume nas produções de Murphy, os tipos razoavelmente normais se cruzam com figuras forçadamente complicadas, exageradas, que talvez estivessem melhor encaixadas numa comédia.
Além de nomes menos conhecidos, como Jon Jon Briones (de AHS e ACS), Charlie Carver (de Te Pego na Saída, 2017) e Alice Engler (de Top of the Lake), o elenco traz rostos consagrados. Ninguém menos que Sharon Stone (vista recentemente em A Lavanderia, 2019) dá as caras, além de Cynthia Nixon (de Sex and the City), Judy Davis (de Feud), Amanda Plummer (a Honey Bunny de Pulp Fiction, 1994), Sophie Okonedo (de Hellboy, 2019) e Corey Stoll (de O Primeiro Homem, 2018). Vincent D’Onofrio, o Rei do Crime, merece menção especial pela competência como um político nojento que parece inspirado por um certo ex-governador carioca.
Com tantas atrizes competentes, dá para perceber que o viés feminino é forte na série, e este é um ponto alto. Afinal, temos uma protagonista, e não um. Mas Murphy mostra que, no drama, se sai bem melhor com uma história (quase) real do que com ficção pura. Muitos dos personagens parecem apenas cumprir sua obrigação, desperdiçando grandes intérpretes. Ainda teremos mais uma temporada antes que Ratched conheça McMurphy e as críticas negativas podem fazer com que o produtor repense algumas coisas. A enfermeira voltará a atacar.