O assunto do momento é o documentário O Dilema das Redes (The Social Dilemma, 2020), disponível na Netflix. Ele, na verdade, não traz novidades, mas é tão impactante por duas razões: as pessoas que dão depoimentos são os próprios protagonistas da criação e desenvolvimento dos aplicativos mencionados; há uma dramatização simpática (ainda que capenga) que mostra de uma forma simples a profundidade da questão. Ou questões, já que o uso indiscriminado e frequente das redes sociais traz diversas consequências.
O diretor Jeff Orlowski mudou seu foco usual, a natureza, e optou por observar o impacto das redes sociais na sociedade e no nosso comportamento. Crianças e adultos são igualmente atingidos, seja pelos tais algoritmos, seja pelas próprias pessoas com quem se convive. Para quem não está muito ligado no assunto, cabe explicar que os algoritmos são regras criadas na programação dos aplicativos que visam manter o usuário o máximo de tempo conectado, oferecendo conteúdo considerado interessante ou relacionado. Se você viu X, pode ser que goste de Y e assim por diante. Isso também vale para conectar pessoas: se você é amigo de X, deve conhecer Y.
A dramatização, uma espécie de novelinha que mostra na prática as consequências do que é tratado, conta com pelos menos duas caras conhecidas: o jovem Skylar Gisondo (de séries como Santa Clarita Diet – abaixo) e Vincent Kartheiser (o Pete de Mad Men). Quem mais comove, no entanto, é a garotinha Sophia Hammons, que mostra uma possível causa para um significativo aumento nos números relacionados a casos de depressão e suicídios. Além do problema ligado aos algoritmos, tem também a ilusão que as postagens criam das vidas e aparências ideais. No mundo real, ninguém é perfeito, mas no Instagram um filtro (ou um ângulo) resolve muita coisa.
Partindo do pessoal, o documentário logo chega à sociedade como um todo, mostrando possibilidades que os algoritmos criam ao seguir as preferências dos usuários das redes. Uma pessoa que lê sobre uma teoria da conspiração X acaba chegando a outra Y, tão sem fundamento quanto a anterior. Mas a bolha criada pelo algoritmo logo faz quem não acredita na gravidade de uma pandemia crer também que exista uma rede que trafica crianças e as esconde em subsolos de pizzarias. Daí a repetir que a Terra é plana, que o homem nunca pisou na lua ou que o ataque ao World Trade Center não passou de um jogo de projeções holográficas dos próprios norte-americanos é um pulo.
A manipulação clara que os aplicativos causam pode ser a culpada até pela eleição ou deposição de governos. Como já se tornou comum, o Brasil aparece no meio da retrospectiva feita, nunca mais de forma positiva. Alguns países sofrem com a propagação de mentiras (ou fake news, como preferirem), acabando com a imagem de políticos e privilegiando outros com as invenções mais fantásticas. Quando as pessoas escolhem acreditar, provas não servem para nada. O que está claro e provado pode ser desacreditado, da mesma forma que não é necessário provar o que foi lido na internet. Afinal, se está lá, deve ser verdade.
O Dilema das Redes, como pode-se ver, traz vários pontos positivos e chama a atenção para problemas reais e enormes. “Não estou entendendo bem ou isso é muito grave?”, pergunta um senador norte-americano numa audiência. Tristan Harris (acima), ex-designer do Google, só balança a cabeça, concordando. Ele é um dos muitos profissionais do Vale do Silício que aparecem dando depoimento sobre as questões levantadas. O documentário ganha muito valor ao mostrar o que pensam essas pessoas, que estavam envolvidas com essas ferramentas desde a concepção delas. A preocupação de todos eles, que até alertam e censuram os próprios filhos por saberem da extensão da situação, deixa mais do que clara a gravidade do problema.
É aí que observamos o maior defeito de O Dilema das Redes: colocar como possíveis salvadores da humanidade os mesmos caras que criaram toda essa situação. Depois de ganharem fama e dinheiro, e aproveitarem bastante essa posição, eles criaram uma consciência e decidiram alertar para o mal que ajudaram a parir. Colocar a possibilidade de curtir postagens ou mandar corações era uma tentativa de trazer positividade ao mundo, como eles dizem, e acabou gerando ansiedade em quem não tem likes o suficiente. Serão eles a resolverem essa bucha agora?
Está bem claro que uma solução para todos os pontos levantados pelo documentário não virá de dentro dessa indústria. Figuras como Jaron Lanier já alertam para os malefícios das redes sociais há algum tempo, e escrevem livros inteiros que podem ser resumidos em: não tenham perfis. Enquanto isso, diversos acadêmicos que estudam o fenômeno propõem soluções diferentes. A maioria delas passa pelo simples abandono de técnicas para roubar e armazenar informações, o que vários softwares já fazem. Existem opções de navegadores que não gravam suas visitas ou usam esses dados para tentar te manipular.
Os realizadores de O Dilema das Redes evitam possíveis respostas óbvias, que talvez as grandes empresas de tecnologia não queiram discutir. Escândalos nessa direção tendem a se tornar mais frequentes, como o da Cambridge Analytica (visto em Privacidade Hackeada, 2019), cujas análises teriam praticamente eleito Donald Trump nos Estados Unidos. Esse é outro defeito do documentário: ele aponta casos pelo mundo, mas opta por ignorar aqueles ocorridos dentro de casa. Como filme, ele é bem fraco. Como fonte de informação, vemos o tamanho do buraco no qual nos enfiamos, porém sem indicar saídas. Afinal, como você chegou a assistir a O Dilema das Redes? Foi a Netflix que sugeriu?