por Marcelo Seabra

Dos muitos heróis dos quadrinhos, somando-se aí as várias editoras que já os publicaram, Batman é provavelmente o que tem uma galeria de vilões mais interessante. É impressionante como aparece criminoso naquela cidade! E um dos mais marcantes sempre foi o Coringa, o Palhaço do Crime. Um psicopata que tem um senso de humor totalmente distorcido, que comete as maiores atrocidades com um sorriso no rosto. E é exatamente ele o protagonista do longa que entra em cartaz essa semana: Coringa (Joker, 2019).

Não à toa, o Coringa foi o escolhido para ser o vilão do primeiro longa do Batman a ser levado a sério no Cinema – que este ano completa 30 anos de seu lançamento. Um ator do porte de Jack Nicholson foi o escolhido para a missão, e não é por acidente que ele rouba a cena. Outra aparição marcante do personagem na tela grande foi na pele de Heath Ledger, duelando com o herói em O Cavaleiro das Trevas (The Dark Knight, 2008), pelo qual o ator levou um Oscar póstumo como coadjuvante.

Pois chegou a vez de o Coringa ser o personagem principal e é difícil pensar em quem seria melhor que Joaquin Phoenix. Ele já foi Jesus Cristo (em Maria Madalena, 2018) e Johnny Cash (Johnny & June, 2005) e trabalhou com diretores do porte de Woody Allen (em O Homem Irracional, 2015) e P.T. Anderson (O Mestre, 2012, e Vício Inerente, 2014). Mas é com o mediano Todd Phillips, mais lembrado pela trilogia Se Beber, Não Case, que ele chegou ao auge. Não é arriscado supor que muito de Coringa não estava no roteiro: Phoenix trouxe ao papel. São vários momentos introspectivos que permitem a ele brilhar. E sua criação parece conversar com as de Nicholson e Ledger, quem sabe até com a de Mark Hamill (do desenho).

Se Ledger já havia dominado o papel, o amigo Phoenix levou a tarefa além, criando toda uma psiquê para o personagem. Não costuma funcionar esse recurso de criar um passado para vilões para justificar a maldade (alguém se lembra de Hannibal – A Origem do Mal?). Colocá-los como protagonistas costuma diminuir o peso deles (caso de Venom, 2018). E a DC/Warner tem um histórico terrível ao dar protagonismo a vilões, Esquadrão Suicida está aí para comprovar (sem falar em uma certa Mulher-Gato). A dupla Phoenix/Phillips mudou o jogo.

O brilhantismo do roteiro de Phillips e Scott Silver (de O Vencedor, 2010) é desenvolver o personagem sem colocar panos quentes. Arthur Fleck é vítima da sociedade, tem um distúrbio mental, veio de um lar abusivo… Tudo o que se possa imaginar! Mas a maldade está nele como em um Dexter Morgan (da série de TV). Ele não é um bonzinho que se perdeu. Na clássica revista A Piada Mortal, ele sustenta a teoria de que qualquer pessoa está a um dia ruim de se tornar um psicopata. Mas isso só é verdade para ele mesmo. E a Gotham City do filme é a cidade perfeita para dar vazão a essa loucura. E ela infelizmente não está muito longe da nossa realidade.

A comparação com o mundo real nos leva a outra possível discussão: estaria o filme incentivando pessoas a agirem com violência? Claro, tanto quanto Clube da Luta (1999), o videogame GTA ou toda a franquia do Rambo. O filme mostra exatamente o contrário: para querer sair com uma arma pelas ruas, você não pode ser normal. A propensão à violência já está aí. Arthur é o herói do filme porque é o filme dele! Isso não significa que ele seja mostrado como normal, modelo ou líder. Pelo contrário, a crítica está presente o tempo todo. A sociedade te joga para baixo o tempo todo, mas isso não é desculpa para sair matando pessoas. E o problema, para Arthur, não são as mulheres, os negros ou os pobres. Pelo contrário: são os ricos.

Outro ponto impossível de ser esquecido aqui é a proximidade do longa com a obra de Martin Scorsese. Mais especificamente com Taxi Driver (1976) e O Rei da Comédia (1982). Por isso, a escolha acertada e proposital de trazer o excepcional Robert De Niro, parceiro frequente de Scorsese, para o elenco. A fotografia, assinada por Lawrence Sher (também de Se Beber…), ressalta a crueza das ruas, a tristeza dos cenários dos anos 80 para as minorias, para os marginalizados, e o contraste entre as áreas pobres e a parte rica, o centro comercial. E os subúrbios, onde encontramos a Mansão Wayne.

Os paralelos entre Arthur e os personagens icônicos de De Niro são claros, não cabe ficar apontando. E o veterano, aqui, muda de lado e se torna o bem estabelecido astro da TV, o que pode levar também à questão da espetacularização dos programas, do uso dos menos favorecidos na luta pelo Ibope. Com todo o seu pessimismo e a sua violência, Coringa nos faz pensar em vários pontos. Em momento algum, incita ou encoraja comportamentos destrutivos. É o filme que o personagem merecia, um retrato de alguém doente que chega ao extremo. Perturbador, incômodo, icônico, um provável clássico para as próximas gerações.

As encarnações do palhaço: Nicholson, Hamill, Leto, Romero e Ledger

Marcelo Seabra

Jornalista e especialista em História da Cultura e da Arte, é atualmente mestrando em Design na UEMG. Criador e editor de O Pipoqueiro, site com críticas e informações sobre cinema e séries, também tem matérias publicadas esporadicamente em outros sites, revistas e jornais. Foi redator e colunista do site Cinema em Cena por dois anos e colaborador de sites como O Binóculo, Cronópios e Cinema de Buteco, escrevendo sobre cultura em geral. Pode ser ouvido no Programa do Pipoqueiro, no Rock Master e nos arquivos do podcast da equipe do Cinema em Cena.

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