por Marcelo Seabra

A música certa, no momento certo, pode mudar o nosso dia. Até, quem sabe, a nossa vida. Isso é o que fica muito claro após uma sessão de A Música da Minha Vida (Blinded By the Light, 2019) longa que nos apresenta a um adolescente que tem toda a sua visão de mundo mudada quando tem contato com as canções de Bruce Springsteen. A diretora e co-roteirista Gurinder Chadha mistura vários temas e sabe bem do que fala quando toca na questão do racismo na Inglaterra.

Baseado no livro Greetings from Bury Park – Race. Religion. Rock ‘n’ Roll, do jornalista Sarfraz Manzoor, o roteiro nos leva à Inglaterra de 1987, mais especificamente à cidade de Luton, a 50 km de Londres. Lá, os paquistaneses invariavelmente se tornam taxistas. Se a vida não está fácil para os ingleses, imagine para os asiáticos que moram e sofrem todo tipo de preconceito. Por isso, Malik Khan (Kulvinder Ghir, da série Beecham House), buscando uma vida diferente para seu filho, controla a rotina de Javed (Viveik Kalra, também de Beecham House) com mão de ferro.

Aos 16 anos, estudando e trabalhando como pode para ajudar a família, Javed não vê propósito em sua vida. Obrigado a levar adiante as tradições da terra de seus pais e proibido de participar festas ou farras, ele tem como único escape escrever poesias que o amigo tenta aproveitar em sua banda de synth-pop, mas julga deprimentes. Além de ter uma banda, Matt (Dean-Charles Chapman, de Antes de Dormir, 2014) também se dá melhor com as garotas, o que traz mais frustração para Javed, que não pode ser como o amigo.

No meio dessa rotina entediante, Javed ganha do outro paquistanês da escola duas fitas cassete com o trabalho inicial de Bruce Springsteen. Não dando muita importância para aquele cantor americano, que aparentemente vive em outra realidade e não poderia acrescentar nada, Javed dá uma chance ao material, tão bem recomendado pelo colega. E é aí que seu mundo vira. Letras tão viscerais, que descrevem tão bem seus anseios e frustrações, cantadas de forma tão enérgica, trazem conforto e servem de alavanca para Javed.

Enquanto acompanhamos o drama do rapaz e de sua família, conhecemos os costumes dos paquistaneses e o modo de vida na pequena Luton. A crise econômica da época de Margaret Thatcher é duramente sentida, com muito desemprego, e as bandas em alta na época, como Pet Shop Boys e a-ha, traziam diversão sem grandes pretensões. A música de Springsteen se mostra universal, mostrando a Javed que seus questionamentos eram os mesmos feitos em vários outros países. Quem vivia na região do Bury Park, em Luton, não pensava tão diferente dos habitantes de Asbury Park, Nova Jersey, cidade do cantor americano.

Mesmo entrando em tantos assuntos espinhosos, A Música da Minha Vida mantém um clima leve, até de fábula. Surpreende saber tratar-se de uma história real, do próprio Manzoor. Com um elenco bem equilibrado e uma trilha sonora fantástica, que funciona até para quem não é familiarizado com a obra do “Chefe” (ou Boss), o filme foge da onda de cinebiografias de artistas para focar em gente como a gente. E se afasta das armadilhas de um Yesterday (2019), mantendo-se simples e amável.

Enfim, Sarfraz Manzoor conheceu seu ídolo, Springsteen

Marcelo Seabra

Jornalista e especialista em História da Cultura e da Arte, é atualmente mestrando em Design na UEMG. Criador e editor de O Pipoqueiro, site com críticas e informações sobre cinema e séries, também tem matérias publicadas esporadicamente em outros sites, revistas e jornais. Foi redator e colunista do site Cinema em Cena por dois anos e colaborador de sites como O Binóculo, Cronópios e Cinema de Buteco, escrevendo sobre cultura em geral. Pode ser ouvido no Programa do Pipoqueiro, no Rock Master e nos arquivos do podcast da equipe do Cinema em Cena.

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  • Depois de ler essa crítica fiquei com muita vontade de ver esse filme!

    • Corra lá e assista! E aproveite e escute o Programa do Pipoqueiro #44!

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