Juntando-se os talentos dos mineiros Helvécio Ratton, mais conhecido cineasta do estado, do jornalista e escritor Murilo Rubião, maior nome do Realismo Mágico da literatura brasileira, e de parte do elenco do Grupo Galpão de teatro, temos O Lodo (2023), longa que chega aos cinemas essa semana. Distribuída pela Cineart Filmes, a obra foi elogiada na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo e agora abre para o grande público a oportunidade de conferi-la e de Belo Horizonte se ver na tela.
Passando por pontos muito conhecidos da geografia da capital mineira, como a Rua Sapucaí e a Praça da Estação, a fotografia de Lauro Escorel acaba ficando mais em ambientes internos, como o apartamento do protagonista ou o consultório do médico onde ele vai se tratar. Isso acentua a sensação do público de confusão e de claustrofobia, não muito diferente do que o próprio personagem está sentindo.
Manfredo (vivido pelo ótimo Eduardo Moreira) está em um estado de entorpecimento frente à vida: não sente vontade de encontrar a amante, de sair de casa, muito menos de trabalhar. Por isso, procura um analista, o Dr. Pink (Renato Parara), mas logo se arrepende da decisão e pede ao médico e à secretária que parem de procurá-lo. Com muita insistência, os dois seguem marcando consultas para Manfredo, afirmando que o tratamento não pode parar. Segundo o terapeuta, o sujeito teria um lodo dentro de si que precisava ser retirado aos poucos.
O roteiro, assinado por Ratton e outro nome famoso do nosso Cinema, L. G. Bayão (de O Segredo dos Diamantes, 2014, também de Ratton), estende o conto de Rubião, criando mais situações e personagens, mas sem perder o clima do absurdo kafkiano que o autor mineiro emulou. Propondo algumas perguntas não tão fáceis, a dupla de roteiristas deixa as respostas para o público, se preocupando mais em criar incômodos que em dar soluções. Fica claro que o filme pretende criar discussões e reflexões acerca de saúde mental, da responsabilidade sobre as ações de cada um e sobre o passado, do qual não se pode fugir.
Psicólogo por formação, Ratton está interessado na mente humana. No curta de estreia do cineasta, Em Nome da Razão (1979), ele aborda o assunto pelo prisma da saúde pública. Agora, está mais interessado na psicologia do indivíduo, como disse à Folha de São Paulo. Para o elenco, convidou atores que já trabalham juntos há anos, muitos deles do tradicional Grupo Galpão, como Moreira, Inês Peixoto e Teuda Bara. Essa cumplicidade de muito tempo pode ser vista na tela, traz naturalidade às relações dos personagens. Não há ninguém fora do tom, todos abraçando a estranheza da situação.
Depois de quase três anos de espera, a Quimera Filmes consegue lançar O Lodo lutando contra as dificuldades impostas por um governo que tentou a todo custo acabar com a cultura do país. O projeto seguinte de Ratton, ao lado da colega produtora Simone Magalhães Matos, seria um curta misturando live action e animação, Não Abuse, e a verba da Lei Estadual de Incentivo à Cultura já estava liberada. A Secretaria Estadual de Cultura, seguindo os passos do então governo federal, se mostrou tão limítrofe que os muitos percalços enfrentados fizeram os produtores devolverem a verba e desistir do projeto. Ter O Lodo em cartaz é uma grande vitória do Cinema nacional.