Pelé foi incontestavelmente um dos maiores brasileiros do século XX. E o mais novo documentário da Netflix mostra como isso aconteceu, principalmente na seleção brasileira, sem omitir as falhas de uma pessoa que foi símbolo de um país em ascensão.
O documentário Pelé (2021), em seus mais de 1h40, não esconde a predileção em retratar a grandeza de Edson Arantes do Nascimento construída à base de talento e superação, mas suscetível a erros. Por sua importância ao longo de mais de 14 anos na seleção brasileira e participação direta em duas conquistas de Copas do Mundo – mais uma, machucado – Pelé tem sua história contada por ele mesmo e por nomes de peso do futebol, do jornalismo, da música e da política.
Nomes como os dos jogadores Zagallo, Rivelino, Paulo Cézar Caju, dos jornalistas Juca Kfouri, José Trajano, do cantor Gilberto Gil, do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso e até mesmo um dos responsáveis pela assinatura do Ato Institucional Número 5, Antônio Delfim Netto, ajudam a situar Pelé no mundo em que ele vivia ao longo de sua carreira, quando ele próprio parecia meio inerte. O local nesse mundo, para ser mais específico, era o Brasil.
O documentário se inicia com trechos de glórias do jogador e, num corte seco, mostra Pelé hoje com dificuldades de se manter em pé e com um andador. Quase que o retrato de um Brasil da década de 50, que perdeu a final de uma Copa do Mundo por 2×1 para o Uruguai, em casa, e que causou um grande choque na sociedade, no famigerado episódio conhecido como Maracanazo, aquela final no Maracanã.
Mas não é só. Conforme conhecemos a história de Edson Arantes do Nascimento, vemos que o país estava mudando. As belas imagens daquela época mostram essa evolução até chegar em 58, quando o jovem Pelé, recém-descoberto no Santos, ganha sua primeira Copa do Mundo na Suécia, aos 17 anos, sendo protagonista e responsável por aniquilar a síndrome de vira-latas que assolava o imaginário do brasileiro, como nomeou o escritor Nelson Rodrigues.
Não é de se estranhar que os diretores britânicos David Tryhorn e Ben Nicholas optem por exaltar Pelé, obviamente por ser o protagonista da obra, da maneira que o fazem. Porém, a história do jogador é grande e magnífica o suficiente e o documentário acaba relevando outros nomes importantes dessa trajetória.
Pelé, ao lado de Manuel Francisco dos Santos (acima), o Mané Garrincha, jogou 30 partidas, com 26 vitórias e quatro empates. Os dois jamais perderam um jogo quando estiveram juntos em campo. Garrincha foi o grande nome da seleção em 62, no bicampeonato no Chile, quando o Rei se lesionou na segunda partida daquela copa.
O documentário sequer cita Garrincha. Pior: dá a entender que Amarildo, substituto de Pelé e importante personagem daquele mundial, foi o grande responsável pela conquista, mostrando um gol seu e logo depois o Brasil levantando a taça. Um esquecimento no mínimo bizarro, bem como pôr o período errado do governo FHC em determinado momento da obra.
O Santos, time que consagrou e foi consagrado por Pelé, também tem sua participação muito tímida. Ainda que seja acertadamente mostrado como o time mais relevante do país na década de 60, o documentário é muito pontual ao falar do clube paulista. Aliás, ainda que fosse realmente o time a ser batido naquela época, o Santos foi superado em alguns momentos, como pelo Cruzeiro de Tostão em 66. E, nisso, o documentário não toca, mostrando, mais uma vez, que Pelé parecia reinar sozinho.
Ainda sobre omissões, o ritmo é apressado ao ponto de o filme suprimir parte da ascensão de Pelé no Santos, mostrando-o sendo apresentado no time e logo depois já partindo rumo à Suécia conquistar a primeira copa. A pressa talvez seja justificada para se dedicar com mais calma à Copa de 70, no tricampeonato da que é chamada de maior seleção de todos os tempos. Essa parte é a que traz as melhores cenas, puro deleite para os fãs do esporte e do audiovisual, com depoimentos de época e imagens belíssimas daquela que foi a primeira copa televisionada em cores no Brasil.
Voltando a falar do Brasil, aliás, a obra não esconde a participação da ditadura militar na escolha dos nomes daqueles que iriam ao México em 70. Aquela sociedade em transformação culmina, em 64, no golpe militar e no terrível período de 21 anos sob esse regime. Pelé, como grande personagem da época, foi cobrado por seus posicionamentos, mas jamais foi contra os militares no poder. O documentário da Netflix não esconde isso, nem mesmo o jogador, que assume que não se importava com isso e que se preocupava (ou parecia se preocupar) apenas com o futebol. Um paralelo justo é feito por Juca Kfouri, entre Pelé e o boxeador Muhammad Ali, que não se omitiu em repreender a política dos EUA e se colocar contra a guerra do Vietnã.
Pelé, como um documentário, pode ser visto como uma obra que registra, de fato, um personagem que foi símbolo de uma época que é mostrada seja pelo viés do futebol, político, cultural ou social – ainda que não tão bem dosados assim. Um merecido registro de alguém que jamais deixou de estar nos holofotes – para o bem ou para o mal.
Peca como uma obra documental ao omitir nomes que são relevantes não só para Pelé, como também outros personagens importantes dessa história: da seleção e do futebol brasileiro. O espectador precisa recorrer a outros registros históricos para reconhecer essas pessoas e sacramentar que sim, Pelé foi gigante, mas não sem outros grandes nomes ao seu lado. O que só aumenta o talento e a dimensão do papel do Rei do Futebol dentro das quatro linhas.