Littles Fires Everywhere é cheia de boas intenções

Depois do sucesso de Big Little Lies, que ganhou uma segunda temporada na HBO, a atriz e produtora Reese Witherspoon encontrou outra adaptação literária para estrelar na TV. Criada por Liz Tigelaar para o Hulu, Little Fires Everywhere (2019) desenvolve o livro de Celeste Ng em oito episódios e adiciona ao caldeirão um punhado de situações não previstas pela escritora. Talvez por isso, a série proponha várias discussões e não se aprofunde em nenhuma delas, morrendo na praia das boas intenções. Disponível na Amazon Prime Video.

A primeira coisa que percebemos assistindo à obra é que todos ali têm um telhado de vidro. Uns criticam os outros tendo seus próprios pecados debaixo do tapete. Logo de cara, descobrimos que a mansão de uma família abastada pegou fogo e os bombeiros rapidamente descobrem vários focos de incêndio – daí o título, Pequenos Incêndios por Toda Parte. Ao longo dos episódios, vamos conhecendo os eventos que antecederam esse fato, e a cada nova revelação, apostamos num suspeito diferente. A própria série joga com a nossa percepção.

Fazendo bom uso do poder que detém, Witherspoon exigiu uma maior participação feminina à frente e atrás das câmeras. Entre os três diretores e os muitos roteiristas e produtores, as mulheres são maioria. E a trama gira em torno das moradoras da pequena Shaker Heights, Ohio, deixando os maridos em segundo plano. Esse equilíbrio é muito bem-vindo e coloca os holofotes principalmente em Witherspoon, que vive a mãe da família cuja casa virou cinzas, e em Kerry Washington (de Scandal e Django Livre, 2012), que interpreta uma artista plástica que chega à cidade e mexe com a rotina dos Richardsons.

O livro de Celeste Ng concentra suas forças nas lutas entre classes, enfatizando o embate entre os ricos Richardsons (abaixo) e os pobres Warrens. A série transforma os Warrens em negros, aumentando o abismo entre as famílias. Além disso, temos as dificuldades da maternidade, vivenciadas por várias personagens, o bullying na escola, as questões ligadas à sexualidade, os sonhos desfeitos, a sustentação das aparências e de vidas infelizes… São vários os pontos abordados. E o tema principal parece ser a hipocrisia que permeia aquela sociedade. O único personagem que tem um comportamento decente e minimamente coerente, mesmo que não se concorde com ele, é Bill Richardson, vivido por Joshua Jackson, o eterno Pacey de Dawson’s Creek.

Veludo Azul (Blue Velvet, 1986) e Beleza Americana (American Beauty, 1999) são ótimos exemplos de filmes que revelam o engodo do american way of life, mostrando o que há por baixo da superfície artificial dos sorrisos dos vizinhos. Ambos colocam personagens tidos como inocentes em contato com os pecados alheios, e daí vem a ruptura. Em Little Fires Everywhere, todos são igualmente odiosos. Mesmo aqueles que parecem bonzinhos têm comportamentos que indicam preconceitos e falta de caráter. É o velho “não sou racista, até tenho um amigo negro”, para ficar no caso principal.

Como uma versão piorada de sua Maddy (de Big Little Lies), Witherspoon é certamente uma das melhores coisas da série. Ela repete os comportamentos que vemos expostos em redes sociais, quando cidadãos tidos como modelos revelam o quanto são escrotos quando querem levar vantagem ou simplesmente humilhar alguém. Até uma tentativa de ajudar sai pela culatra, sendo no fim das contas apenas uma oportunidade para a pessoa se gabar do quanto é boazinha. Já seu contraponto, Mia, que deveria ser a pessoa bacana, também tem uma alta dose de erros e de escolhas forçadas, existindo apenas para fazer o roteiro andar. Tudo o que acontece com ela é extremamente conveniente, e não ajuda em nada a cara de choro que Washington faz em praticamente todas as cenas em que é confrontada – boa parte da série.

Diálogos fracos e previsíveis são seguidos por cenas que não fazem sentido ou não são razoavelmente concluídas, nos levando a um final que parece saído da obra de Agatha Christie. O elenco jovem é muito bom, principalmente Lexi Underwood (Pearl Warren – abaixo), que tem aqui um papel que deve alçá-la a bons trabalhos. Ter personagens problemáticos não é de forma alguma demérito, várias séries são assim. O problema é criá-los apenas para cumprir agendas, sem desenvolvê-los o suficiente. Ou torcer para que as boas intenções sejam o suficiente, já que fica muito feio falar mal de quem aponta o racismo ou qualquer tipo de preconceito. É como se tivéssemos que gostar de Little Fires Everywhere automaticamente, apenas pela proposta.

Lexi Underwood faz a parte dela, mesmo que o roteiro não ajude

Sobre Marcelo Seabra

Jornalista e especialista em História da Cultura e da Arte, é mestre em Design na UEMG com uma pesquisa sobre a criação de Gotham City nos filmes do Batman. Criador e editor de O Pipoqueiro, site com críticas e informações sobre cinema e séries, também tem matérias publicadas esporadicamente em outros sites, revistas e jornais. Foi redator e colunista do site Cinema em Cena por dois anos e colaborador de sites como O Binóculo, Cronópios e Cinema de Buteco, escrevendo sobre cultura em geral. Pode ser ouvido no Programa do Pipoqueiro, no Rock Master e nos arquivos do podcast da equipe do Cinema em Cena.
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2 respostas para Littles Fires Everywhere é cheia de boas intenções

  1. Lucas disse:

    Considerei essa crítica equivocada por completo. O que a série faz é tratar assuntos sensíveis com a mesma banalidade que eles se manifestam no cotidiano. Se parecem previsíveis e sem sentido é porque assim o são todos os dias, especialmente pra quem está do lado marginalizado dessa assimétrica dualidade social e precisa lidar com a falta exaustivamente com a violência rotineira por ela provocada.

    Já para quem enxerga isso apenas como um tema da moda a ser discute, tendo o privilégio de poder passar despercebido por não sutis agressões, talvez possa ter a impressão de que algo mais impressionante está faltando. Mas pra muitos fica evidente que a obra não foi feita para ser legalzinha.

    Fica evidente a naturalização da violência quando se coloca no mesmo balaio o “telhado de vidro” das duas mães protagonistas. Uma falsa simetria também invocada por Lexie no último diálogo com o namorado. É possível concluir, assim, que a banalidade que se torna o debate racial, por quem tem o privilégio de querer não se aprofundar, se faz também presente nesta crítica.

    • Marcelo Seabra disse:

      Lucas, boas intenções não garantem o sucesso de nenhuma obra. Ninguém negou a importância dos temas tratados, mas a forma. Para algumas pessoas, é obrigatório gostar de um filme ou série apenas por tratar de racismo. Sinto muito, aqui não é o caso.

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