Doutor Sono retoma O Iluminado e vai além

por Marcelo Seabra

Pelas últimas décadas, fãs tanto do livro (1977) quanto do filme (1980) O Iluminado (The Shining) podem ter se perguntado: o que teria acontecido com Danny Torrance? Vivido no Cinema magistralmente por Jack Nicholson, Jack Torrance enlouqueceu no Hotel Overlook e tentou matar sua mulher e filho. Um belo dia, o próprio Stephen King, autor da história, se fez a mesma pergunta. Foi quando surgiu Doutor Sono (Doctor Sleep), que agora também ganha sua adaptação. Chegou a hora de novamente acompanharmos Danny e saber o que houve.

Depois de tantos traumas, é fácil compreender que ele cresceu de maneira bem atribulada. Alcoólatra como o pai, Danny não se fixa a nenhum lugar, trabalho ou parceira. O grupo Alcoólatras Anônimos lhe dá algum alento e ele consegue emprego como enfermeiro de doentes terminais. Seu “brilho” (ou iluminação) está enterrado no fundo de sua mente, mesmo que vez ou outra veja algo que mais ninguém vê. Mas não adianta fugir de si mesmo, como ele logo entende, e seu passado volta a bater na porta.

Essa é a trama básica de Doutor Sono, que chega agora aos cinemas pelas hábeis mãos de Mike Flanagan. Tendo realizado Jogo Perigoso (Gerald’s Game, 2017) para a Netflix, ele já sabia o tamanho do desafio que é adaptar uma história de Stephen King. Tramas que funcionam bem melhor em palavras que em imagens, conclusões discutíveis e fãs ardorosos e extremistas são alguns dos problemas enfrentados. Agora, levando-se em consideração que se trata da sequência de um novo clássico do Cinema, dirigido por um gênio incontestável, a tarefa fica hercúlea.

Pegando o trabalho de onde Stanley Kubrick (1928-1999) deixou, inclusive usando a mesma logomarca do primeiro, Flanagan tapa possíveis buracos e nos leva ao “presente”, que no caso é 2011. É quando reencontramos Dan, e o diretor aproveita para fazer a alegria dos fãs do filme de 1980. Um exemplo: uma personagem mora numa casa exatamente no número 1980. O escritório onde acontece uma entrevista de emprego foi montado da mesma forma de antes. Parece uma série de piscadelas para o público. As referências variam de discretas a bem escancaradas, algo que Jogador Nº 1 (Ready Player One, 2018) também fez bem.

Mas Flanagan não se contenta apenas em homenagear Kubrick. Ele leva a história além e, como roteirista, tem uma missão complicada: atender tanto os fãs do livro quanto do filme, e há diferenças fundamentais. Talvez resida aí o problema de King com o diretor. Mas é importante deixar clara a maior diferença entre os longas. Enquanto O Iluminado é um drama psicológico com elementos sobrenaturais que vai numa crescente rumo ao terror, Doutor Sono já abraça a fantasia de frente. O tom é bem distinto, o que dá uma identidade ímpar a cada obra. Não se trata de comparar as duas, elas seguem seus caminhos. A trilha sonora, dos Newton Brothers, faz o mesmo: aproveita notas para ir adiante.

Outra questão que logo surge: O Iluminado tinha Jack Nicholson, lembrado até hoje como o psicopata do machado derrubando uma porta. Com a benção de King, Ewan McGregor foi o escolhido para viver Dan adulto. O que não deixa de ser irônico, já que o ator é hoje conhecido pelo grande público por interpretar uma versão mais jovem de outro ícone do Cinema: Obi-Wan Kenobi, de Star Wars. McGregor traz as expressões e as emoções necessárias e atende muito bem o papel, e o mesmo pode-se dizer de sua colega. Rebecca Ferguson (de MIB Internacional, 2019) vai de sexy a ameaçadora em poucos quadros, e lidera com força o bando de vilões.

Por mais que os veteranos façam bem seus papéis, o grande destaque acaba sendo a novata Kyliegh Curran (acima). Como a jovem Abra, inexperiente quanto a suas habilidades, mas extremamente poderosa, ela é responsável por bons momentos no filme.  Sua jornada fará os mais cínicos dizerem que é uma estrutura similar à de uma aventura de super-herói. Mas tem algo aqui que falta à Marvel: um autor. Flanagan imprime sua marca, sempre criando um clima interessante. Seus filmes podem até ser um pouco lentos em sua construção, mas geralmente não decepcionam. E ele gosta de repetir atores com quem trabalhou, e aqui temos Bruce Greenwood, Henry Thomas e Carel Struycken de Jogo Perigoso e Jacob Tremblay de O Sono da Morte (Before I Wake, 2016).

Foi o sucesso de It: A Coisa (2017) que fez com que a Warner Bros. encarasse a produção de Doutor Sono. King está sendo descoberto por novas gerações e a cada ano vários de seus livros ganham vida, alguns pela segunda vez (caso de Cemitério Maldito). Quando não em longa-metragem, como série, como The Outsider, Lisey’s Story, The Dark Tower e The Stand, todas com data de estreia próxima. Lembrando que o escritor lança pelo menos um livro por ano, matéria-prima não vai faltar.

Ferguson é a líder do bando de vampiros de vapor

Marcelo Seabra

Jornalista e especialista em História da Cultura e da Arte, é mestre em Design na UEMG com uma pesquisa sobre a criação de Gotham City nos filmes do Batman. Criador e editor de O Pipoqueiro, site com críticas e informações sobre cinema e séries, também tem matérias publicadas esporadicamente em outros sites, revistas e jornais. Foi redator e colunista do site Cinema em Cena por dois anos e colaborador de sites como O Binóculo, Cronópios e Cinema de Buteco, escrevendo sobre cultura em geral. Pode ser ouvido no Programa do Pipoqueiro, no Rock Master e nos arquivos do podcast da equipe do Cinema em Cena.

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