Cargo e Anon são novidades na Netflix

por Marcelo Seabra

Duas novidades da Netflix tentam reabilitar o crédito da produtora, que andou fazendo e despejando no público muita coisa ruim. Cargo (2017) e Anon (2018) são obras bem cuidadas que trazem rostos familiares e tramas interessantes. Explorando gêneros diferentes, ambas acabam revelando nuances mais profundas do que as vistas num primeiro momento. São filmes que tratam, acima de tudo, da condição humana, explorando as relações entre os personagens em camadas além da superfície.

Expansão do curta homônimo que fez sucesso no YouTube, Cargo segue a mesma cartilha da surpresa nas bilheterias Um Lugar Silencioso (A Quiet Place, 2018). São duas produções que usam o terror para ir mais longe. Mas, se Um Lugar mantinha alta a tensão, Cargo carrega mais na dose de drama, nos apresentando a um sujeito comum que precisa proteger sua esposa e filha em meio a um apocalipse zumbi. O tema anda mais do que batido, mas o enfoque consegue ser original, se afastando de The Walking Dead e similares.

Mais do que acostumado com o tipo “gente como a gente”, Martin Freeman vive o pai, Andy. Ao mesmo tempo em que faz papéis como Bilbo Bolseiro (na trilogia O Hobbit), John Watson (na série Sherlock) e o Agente Ross (do Universo Marvel), Freeman escolhe tipos absolutamente corriqueiros, como o típico fracassado Lester, de Fargo. Circulando por o que parece ser o outback australiano, Andy precisa superar vários desafios e decisões erradas para que sua filha possa ter um futuro. Tudo muito crível, dentro daquela realidade.

Assim como o que aconteceu com The Babadook (2014), outra produção australiana baseada num curta, Cargo manteve sua essência e cresceu sem parecer enrolação. Mérito dos diretores, Ben Howling e Yolanda Ramke, essa também roteirista. Os dois também assinaram o original e fazem aqui a estreia em um longa. Respeitam as regras que estipulam e trabalham com uma edição ágil. Isso, além de terem escolhido a ótima novata Simone Landers para viver uma personagem importante.

Com uma carreira que se confunde com a ficção-científica, Andrew Niccol ataca novamente. Poucas vezes fora do gênero (como em O Senhor das Armas, 2005), ele parece até prever para onde estamos caminhando (como em O Show de Truman, 1998), mesmo que dê umas viajadas (O Preço do Amanhã, 2011). No fundo, sempre há uma metáfora, algo que vá fazer o público refletir. Não podia ser diferente com Anon, que não chega a ser uma obra-prima (como Gattaca, 1997), mas não é ruim (como Simone, 2002).

Mais uma vez vivendo o tipo durão com o qual está habituado, Clive Owen (de The Knick) é uma espécie de detetive onisciente, já que possui um mecanismo que lhe permite acessar a visão de qualquer cidadão. Nesse futuro, é fácil mostrar para um amigo exatamente o que se viu, e as permissões especiais da divisão de investigação permitem muito mais. As possibilidades desse recurso são muito interessantes, mas até que ponto temos privacidade se alguns conseguem saber tudo o que fazemos?

Em busca de uma segurança utópica, sacrificamos alguns direitos, como ao anonimato. Se hoje, com câmeras da polícia e de portarias de prédios, já conseguimos apontar criminosos e prendê-los, imagine se pudéssemos ver exatamente o que aconteceu? Inclusive, cruzando informações retiradas de todos os envolvidos! O conceito é bem instigante, o mínimo que poderíamos esperar de Niccol.

A trama tem o pontapé inicial dado quando o Detetive Frieland passa por uma pessoa na rua que ele não consegue “escanear”. Coincidentemente, um assassinato é realizado sem que se consiga acessar as lembranças da vítima. É como se o criminoso a tivesse hackeado, tirando seu ponto de vista. Assim, a vítima vê o que o criminoso vê. O que, se você parar um pouco para pensar, deve dar uma agonia gigantesca. O que vemos é a nossa realidade, e esse é um conceito do qual dependemos.

É verdade que a ideia é melhor que a execução, que acaba caindo num lugar comum neo-noir, seguindo uma fórmula mais do que conhecida. Mas não deixa de ser bacana acompanhar o duelo entre Owen e Amanda Seyfried (de O Preço do Amanhã). E qualquer futuro imaginado por Niccol sempre terá apelo. No final, mesmo sem muita tensão ou surpresa, queremos continuar acompanhando aquele universo. Poderia, por exemplo, virar uma série de TV.

Deve ser difícil relaxar com tanta informação!

Marcelo Seabra

Jornalista e especialista em História da Cultura e da Arte, é atualmente mestrando em Design na UEMG. Criador e editor de O Pipoqueiro, site com críticas e informações sobre cinema e séries, também tem matérias publicadas esporadicamente em outros sites, revistas e jornais. Foi redator e colunista do site Cinema em Cena por dois anos e colaborador de sites como O Binóculo, Cronópios e Cinema de Buteco, escrevendo sobre cultura em geral. Pode ser ouvido no Programa do Pipoqueiro, no Rock Master e nos arquivos do podcast da equipe do Cinema em Cena.

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