Descubra o que aconteceu na fazenda Foxcatcher

por Marcelo Seabra

Os fatos interessantes estavam lá. Mas ligá-los não era das tarefas mais fáceis. Criar uma obra intrigante com acontecimentos reais e espaçados não parecia uma boa ideia, mas o diretor Bennett Miller conseguiu novamente entregar uma grande obra: Foxcatcher (2014). Curiosamente, o que aconteceu é algo que só se tornou famoso fora dos Estados Unidos ou do circuito do esporte agora, e o filme é o grande responsável por isso. E, mesmo que todos tenham tomado conhecimento do ocorrido, o filme permanece vivo, rico e indispensável.

Com o medonho subtítulo Uma História que Chocou o Mundo, Foxcatcher nos apresenta a dois campeões de luta greco-romana que tem um relacionamento complicado: enquanto o irmão mais velho, David (Mark Ruffalo, de Truque de Mestre, 2013), parece mais centrado e calmo, Mark (Channing Tatum, de Terapia de Risco, 2013), o caçula, parece em busca de uma identidade própria, que o reconheçam como o ótimo atleta que é, e não apenas como o irmão do grande David. Ambos ganharam medalhas de ouro em eventos de grande porte e continuavam a se preparar para os próximos, principalmente as olimpíadas de Seoul, em 1988. Casado e com filhos, David conseguia se dedicar a um aspecto de sua vida sem abandonar os demais. Já Mark não tinha vida social, hobbies e nem mesmo traquejo para lidar com outros seres humanos.

Com um discurso ufanista, um bilionário procura Mark oferecendo ajuda, com patrocínio e toda a estrutura necessária para a preparação de lutadores. John du Pont (Steve Carell, de O Verão da Minha Vida, 2013), apesar de todo o dinheiro de que dispunha, era um sujeito solitário, que buscava a aprovação da mãe e que queria ser reconhecido como um grande treinador e líder. Suas atitudes equivocadas e seu discurso vazio de auto-ajuda deixam claro que ele não era um tipo muito normal. A dinâmica entre essas três personalidades distintas é o grande atrativo de Foxcatcher, algo que só é possível graças a um roteiro bem amarrado e enxuto (de E. Max Frye e Dan Futterman) e a interpretações complexas, extremamente bem construídas, que passam uma falsa impressão de facilidade, como se eles não estivessem se esforçando.

Vivendo os irmãos (ao lado, os reais), Ruffalo e Tatum exibem a dinâmica exata para que acreditemos naquela relação. Eles são quase como pai e filho, já que um criou o outro e foi praticamente sua única referência adulta. Não a toa, eles seguiram a mesma carreira, ambos tendo alcançado sucesso. Tatum, apesar de não ser apontado como um grande artista, encontrou um papel que encaixa bem com o tanto de talento que dispõe, e só ajuda o personagem ter muitos músculos e falas menos elaboradas. Ruffalo, por sua vez, vem provando o quanto é bom com papéis bem diferentes uns dos outros, e não seria fácil prever que um lutador fortão estaria entre eles. E a cereja do bolo é Carell, que usa a maquiagem pesada para criar du Pont como alguém pouco expressivo, que quer parecer forte e determinado, mas é apenas frio. Na verdade, ele é uma pessoa patética, do tipo que inventa um apelido enaltecedor para si mesmo e pede aos outros que o usem para chamá-lo. E Carell, geralmente apontado como comediante, como se isso o diminuísse ou limitasse, só mostra como, após fazer comédia, certos atores podem fazer praticamente tudo.

Foxcatcher chega ao Brasil tendo tido três indicações aos Globos de Ouro e com outras cinco possibilidades nos Oscars e três no BAFTA, entre várias outras. Responsável pelos elogiados Capote (2005) e Moneyball (2011), Bennett Miller foi consagrado como o melhor diretor de 2014 no Festival de Cannes. E não faltou uma polêmica: o lutador Mark Schultz foi à televisão difamar o longa, dizendo que fugiu muito da realidade, para pouco depois lamentar o acontecido e reforçar a enorme fidelidade com os fatos. Ele se justificou dizendo que foi muito doloroso reviver tudo aquilo e aproveitou para elogiar as escolhas do roteiro, que julga detalhado e, ao mesmo tempo, objetivo. O filme nem precisava de chamar a atenção de outras formas, já que certamente se trata de um dos melhores do ano, se não o melhor.

Miller levou seu elenco a Cannes

Marcelo Seabra

Jornalista e especialista em História da Cultura e da Arte, é atualmente mestrando em Design na UEMG. Criador e editor de O Pipoqueiro, site com críticas e informações sobre cinema e séries, também tem matérias publicadas esporadicamente em outros sites, revistas e jornais. Foi redator e colunista do site Cinema em Cena por dois anos e colaborador de sites como O Binóculo, Cronópios e Cinema de Buteco, escrevendo sobre cultura em geral. Pode ser ouvido no Programa do Pipoqueiro, no Rock Master e nos arquivos do podcast da equipe do Cinema em Cena.

View Comments

  • Esse "A História que chocou o mundo" é só pra atrair o publico, não tem nada de tão chocante assim. Hoje em dia pra chocar o mundo precisa de muuuuuuuito mais!

    O filme nunca deixa isso claro (ao menos não com palavras), mas o John Du Pont era homossexual e sentia tesão em assistir homens se agarrando no tatame. Eu sabia disso antes de assistir, assim encontrei várias cenas desconfortáveis nas quais o personagem observa seus lutadores ou mesmo os agarra. Sem contar que isso pode ser visto como um motivo a mais além do patriotismo para a criação da academia Foxcatcher e o gosto do personagem por lutas. E a forma como o Carell trata a homossexualidade enrustida do personagem é brilhante, além do ator estar irreconhecível. Na verdade todo o trio. Ainda que o Tatum e o Ruffalo não estejam cobertos por maquiagem, a transformação física deles está nos gestos (ou falta de) e no modo de andar desses lutadores, na intensidade que o Tatum traz estampada na cara. A cena do Ruffalo em frente a câmera do documentarista é ótima. O homem que até pouco antes não podia ser comprado se sentindo completamente humilhado.

  • Team Foxcatcher (2016) é um documentário sobre como John du Pont usou seu dinheiro para ajudar a equipe de luta olímpica dos EUA, construindo instalações de treinamento caras em sua propriedade, chamada 'Foxcatcher'.

    O documentário é melhor q o filme, não que o filme seja ruim não é o caso. O documentário é mais rico em detalhes. Recomendo os dois!

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