por Marcelo Seabra
Coube a um destemido diretor brasileiro fazer o que muitos tentaram em vão: adaptar para o cinema o livro On the Road, ou Pé na Estrada, no Brasil. Francis Ford Coppola comprou os direitos em 1980, pagando uma bagatela, e vinha procurando um capitão para este barco. O problema se resolveu quando assistiu a Diários de Motocicleta (2004): Walter Salles foi contratado e Coppola seguiu como produtor. O resultado é uma obra fiel à fonte, com seus méritos e seus defeitos, que deixaria Jack Kerouac satisfeito.
Livro clássico, definidor de toda uma geração, Pé na Estrada foi catapultado à condição de bíblia de um grupo de intelectuais marginais dez anos depois de escrito, quando saiu a primeira resenha sobre ele no jornal The New York Times. Várias outras vieram e o livro logo mostrou seu potencial para polêmicas. Fala abertamente sobre “amor livre” (outra denominação para sexo desenfreado), drogas, jazz e outros assuntos caros à chamada Geração Perdida, ou Beat, como o próprio Kerouac definiu. Inexplicavelmente, o filme chega ao Brasil com o título Na Estrada, a tradução exata do inglês, mas que foge ao que já era consagrado por aqui.
Por ter sido escrito em 1951 e publicado em 1957 (após muita luta com editores e várias revisões), o livro já não tem aquele vigor, já não escandaliza como aconteceu na época. Hoje, muito do que lemos ali pode ser tido como banal, muitos não vão entender o impacto dele para a literatura americana. Basta dizer que, em muitas histórias (como em Pergunte ao Pó, de John Fante), há um escritor que almeja escrever “o grande romance americano”, e foi exatamente o que Kerouac atingiu. Ele até ficou marcado, já que nenhum outro trabalho seu conseguiu chegar perto de tanto reconhecimento.
O elenco contratado foi muito bem escolhido, representando com justiça cada personagem. A história foi claramente baseada nas experiências de Kerouac (acima, à direita) e seus conhecidos, com pouca ficção misturada e apenas os nomes trocados. O autor é representado por Sam Riley (de Pior dos Pecados, 2010), que vive o alter ego Sal Paradise, um jovem escritor relutante que tem sua vida mudada quando conhece o maluco Dean Moriarty. Aí está o grande destaque do filme: a interpretação de Garret Hedlund (o herdeiro de Jeff Bridges em Tron: O Legado, de 2010). O ator dá a dose certa para que seu Moriarty não seja um babaca, um lunático ou mesmo um estereótipo servindo às convenções do roteiro. O verdadeiro Moriarty, Neal Cassady (acima, à esquerda), não se prendia a nada, seja trabalho, família ou mesmo os amigos, vivendo intensamente – e de forma destrutiva – cada momento. Riley acaba ficando apagado perto de tal sujeito, o que também devia acontecer com Kerouac.
Mulheres não faltaram à turma beat, ou a Moriarty, em especial. As duas principais, Marylou e Camille, são vividas por Kristen Stewart (à esquerda) e Kirsten Dunst (à direita). Stewart aparece bastante, inclusive em cenas de nudez, que ficaram bem naturais, e mostra mais serviço que em toda a novela Crepúsculo ou o recente Branca de Neve e o Caçador. Dunst (de Melancolia, 2011) tem menos tempo para compor sua Camille, mas cumpre bem sua tarefa. Ela representa o que Moriarty conscientemente busca, mas no fundo não quer: o fim de suas aventuras e uma vida séria, como pai de família. O que, para ele, seria o tédio.
Saindo desse quarteto principal, o longa traz vários nomes interessantes. Tom Sturridge (de Os Piratas do Rock, de 2009) vive Carlo Marx, poeta inspirado em Allen Ginsberg, e Viggo Mortensen (de Um Método Perigoso, 2011) é a figura paternal sob efeito de ácido Old Bull Lee, ou William Burroughs, de fato. Aparecem ainda, em participações menores, Alice Braga, Terrence Howard, Elizabeth Moss, Steve Buscemi e Amy Adams. Afinal, na vida, as pessoas vêm e vão, e o roteiro de Jose Rivera (de Cartas para Julieta, 2010) mantém esse caráter do livro, cada episódio com seus personagens mais marcantes e efêmeros, além dos recorrentes.
Uma vez caracterizada a importância que On the Road teve para a literatura e a sociedade em geral, devo fazer uma confissão: a leitura, para mim, foi extremamente penosa. Meses se passaram até que consegui chegar ao final dessa história arrastada e sem sentido, sobre coitados pretensiosos, sem eira nem beira, que se movimentam pelos Estados Unidos buscando prazer e satisfação, imaginando serem mais do que realmente eram. Por isso, mantenho que o filme ficou bem fiel, inclusive com esses momentos descartáveis e personagens que passam sem dizer a que vieram. Walter Salles e sua equipe fizeram um trabalho tecnicamente primoroso, e Rivera aproveitou ao máximo o material que dispunha.