Reino Animal mostra a qualidade do cinema australiano

por Marcelo Seabra

Alguns filmes são bem característicos do lugar onde foram produzidos. Na Austrália, mesmo usando uma língua comum a vários países, equipe e elenco constantemente são formados por nativos, e isso dá uma cara muito própria às obras – assim como os primeiros filmes de Guy Ritchie (como Jogos, Trapaças e Dois Canos Fumegantes, de 1998, e Snatch, de 2000) são essencialmente ingleses. Mais um ótimo exemplo desse tipo de produção entre compatriotas é Reino Animal (Animal Kingdom, 2010). O único inconveniente é o fato de filmes como esse demorarem tanto para chegarem por aqui, como os nossos também demoram para encontrar o mercado externo. A boa notícia é que Reino Animal já está nas locadoras.

O diretor e roteirista australiano David Michôd faz aqui sua estreia no comando de longas de ficção, e já apresenta um trabalho melhor que muitos veteranos por aí. Lembrando, em alguns momentos, outros filmes sobre criminosos, como Os Bons Companheiros (Goodfellas, 1990), ele conta uma história interessante com personagens fortes e bem construídos. A trama começa quando Josh “J” Cody (James Frecheville) liga para a avó contando, de uma forma meio atordoada, que a mãe acabara de ter uma overdose e morrer. Janine “Smurf” Cody (Jacki Weaver) não tinha contato com o neto há bastante tempo, desde que a filha deixou a família e cortou laços.

Sem ter opções e de uma forma até automática, como se outra possibilidade fosse impensável, Smurf leva o jovem para casa, onde ele reencontra os tios. Um é um psicopata procurado, outro trafica drogas e o mais novo é um aprendiz de ladrão. O mais velho, o violento Andrew “Papa” Cody (Ben Mendelsohn, de Presságio, 2009), “trabalha” com o amigo Barry “Baz” Brown (Joel Edgerton, de A Última Cartada, 2006), mas teve que sumir por uns tempos por estar muito em evidência. A divisão anti-roubos da polícia é bem truculenta e acaba detonando uma guerra contra a família. J se vê no meio dessa batalha e fica dividido entre a família perigosa e o detetive (Guy Pearce, de O Discurso do Rei, 2010 – acima, com Frecheville) que parece querer ajudá-lo.

O roteiro é ligeiramente inspirado por fatos reais. Em 1988, em uma vingança, a família Pettingill executou policiais, e alguns elementos foram aproveitados, como o carro favorito do assassino real, Victor Pierce, ser usado também em cena. Trata-se do Holden Commodore, roubado por J para os tios. Mas essa característica não é usada como meio de promover o filme, como diversos outros fazem por aí, acreditando mobilizar mais o público por ter um pé na realidade. Depois de alguns conselhos da produtora Liz Watts e de uma evolução nas versões, o roteiro ficou bem amarrado, povoado por pessoas críveis, que perpetuam ações brutais, mas perfeitamente possíveis.

Outro ponto forte de Reino Animal é o elenco. Mesmo se mostrando bem competentes, os atores não são muito famosos fora do circuito cinematográfico australiano. Guy Pearce é a única cara que o público deve reconhecer, já que esteve em produções memoráveis, como Los Angeles – Cidade Proibida (LA Confidential, 1997), Guerra ao Terror (The Hurt Locker, 2008) e Amnésia (Memento, 2000). Além dele, outro destaque é Joel Edgerton, indicado por alguns veículos sensacionalistas como “o novo Russell Crowe”, que de fato tem uma presença forte, assim como o colega Ben Mendelsohn (ambos estão acima).

Mas quem rouba as cenas nas quais participa é Jacki Weaver, a mamãe Smurf. Carinhosa no limite do incesto e extremamente protetora, ela se mostra tão fria quanto os filhos, e entendemos bem de onde eles vieram. Não foi à toa que Jacki ganhou indicações ao Oscar e ao Globo de Ouro de atriz coadjuvante pelo papel.

Reino Animal foi extremamente premiado em sua Austrália natal, em diversas categorias. O diretor Michôd e os atores Jacki, Mendelsohn e Edgerton foram agraciados, entre outros. E o filme ainda levou o prêmio do grande júri do Festival de Sundance, o reduto americano de filmes do cinema independente mundial. Prêmios, muitas vezes, podem não significar muita coisa. Aqui, foi um reconhecimento natural para uma bela obra, que deve ser conferida o mais rápido possível.

Jacki Weaver, a mamãe Smurf

Sobre Marcelo Seabra

Jornalista e especialista em História da Cultura e da Arte, é mestre em Design na UEMG com uma pesquisa sobre a criação de Gotham City nos filmes do Batman. Criador e editor de O Pipoqueiro, site com críticas e informações sobre cinema e séries, também tem matérias publicadas esporadicamente em outros sites, revistas e jornais. Foi redator e colunista do site Cinema em Cena por dois anos e colaborador de sites como O Binóculo, Cronópios e Cinema de Buteco, escrevendo sobre cultura em geral. Pode ser ouvido no Programa do Pipoqueiro, no Rock Master e nos arquivos do podcast da equipe do Cinema em Cena.
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