Democracia: artigo de luxo. Não basta querer e ter; é preciso saber usar e cuidar

A América Latina começa a perceber que deu errado, e no desespero de tentar consertar, acaba piorando o que já é muito ruim

Os recentes acontecimentos no Chile andam me tirando o sossego. Desde a famigerada greve dos caminheiros, em 2018, não me sentia incomodado assim – sociologicamente falando, claro.

Conheço o Chile e sua bela capital. Moderna, dinâmica, beirando as melhores cidades do Primeiro Mundo. Por ali, vive e trabalha um povo alegre, gentil e esforçado. Chile e chilenos se merecem. Ao menos era o que eu imaginava.

A melhor e mais bem-sucedida democracia da América do Sul. Crescimento econômico médio de 2.5% nos últimos anos. Desemprego em torno de 7%. Inflação e juros, baixos e controlados. Saúde adequada e educação de primeira. Segurança pública comparada à média dos países europeus. Afinal, que raios acontece no Chile?

Com 18 milhões de habitantes — dos quais 6 milhões em Santiago — , como qualquer país sul americano o Chile enfrenta o drama da desigualdade social. E a causa é praticamente a mesma: um processo de colonização que fincou raízes estruturais de concentração de renda e poder, típico das monarquias europeias do início da Idade Moderna.

Porém, comparado aos seus vizinhos, o Chile evoluiu sobremaneira (também) nesse quesito. Se não é perfeito — e não é — ao menos conquistou uma qualidade de vida, digamos, minimamente digna às classes mais pobres. E o estrato realmente vulnerável da sociedade é muito pequeno.

Contudo, neste mundo dramaticamente novo e desconhecido, no qual sentimentos individuais transformam-se em coletivos em questão de horas, senão minutos; em que as pessoas sentem-se verdadeiramente unidas, umas às outras, através da tela de um smartphone; onde a insatisfação, outrora pacífica, ganha cores de ódio violento nas redes sociais, já não basta aos governos prestar um “bom serviço” ou ser o melhor país da região. É imperativo atender à demandas, cada vez mais crescentes e impossíveis.

Por motivos diversos e complexos, a tal Geração Y (ou Millennials), capaz de feitos brilhantes no mundo da inovação e do empreendedorismo, acredita piamente ser merecedora de um mundo melhor; bem melhor. O diabo é que também acredita que este mundo deve lhe ser dado, pois uma obrigação moral e ética daqueles que destruíram a natureza, escravizaram pessoas, corromperam sistemas, assassinaram centenas de milhões de seres humanos por questões ideológicas, religiosas, étnicas e geográficas, e a expôs aos perigos de um planeta ambientalmente insustentável e prestes a sucumbir diante das guerras comerciais (alguém aí se lembrou da tal Greta Thunberg, a adolescente sueca que “chocou” o mundo com o seu discurso na ONU?).

Explicando melhor: há toda uma geração, ao redor do planeta, que não aceita viver sem ter seus sonhos realizados e os desejos satisfeitos. E se isso não ocorre, a culpa é de alguém – geralmente do “sistema” (ou establishment). Do mesmíssimo alguém que descrevi no parágrafo anterior. Se fosse uma pessoa ou um ser vivo, seria o próprio Demo; o Anti Cristo; o Inimigo. Mas passemos ao segundo agente de turbulência social: os pobres.

Formadas por pessoas incrivelmente vulneráveis em todos os aspectos, inclusive o cognitivo e cultural, as populações desassistidas – historicamente massa de manobra de populistas e vigaristas de toda sorte – antes isoladas geográfica e socialmente, neste mundo (que chamei de “novo”) foram finalmente incluídas. E até mesmo ouvidas! As redes sociais não distinguem pobres e ricos, pretos e brancos, direita e esquerda. As redes unem — e reúnem — todos os matizes em torno de causas comuns, como “uma vida melhor”. E em torno de um sentimento também comum: os governos são corruptos, repressores e usurpadores.

O terceiro elo de desagregação é o oportunismo político, cultura cafajeste predominante em nosso país e em boa parte do mundo subdesenvolvido. Populistas, mentirosos manipuladores, uma gente capaz de legislar contra o próprio povo que lhe confiou o voto apenas para derrubar o inimigo político. Ou governar para um grupo específico – alguém se lembrou do PT? Ou alterar leis em benefício de amigos – alguém se lembrou do STF?

Intelectualmente mais capacitado, organizado e financeiramente estruturado, este grupo serve como estopim, como voz de comando, como linha mestra para atos como os que estão ocorrendo agora em vários países da América Latina e do terceiro mundo.

Aproxime e misture estes três grupos nas redes sociais, e começaremos a compreender o motivo da treta chilena: geração mimimi + desigualdade social histórica + redes sociais + frustração e raiva + oportunismo político dos opositores + governo despreparado. Lembrou o Brasil, né? Sim, eu sei.

Óbvio que há mais fatores, bem como fatos históricos e macro-econômicos a acrescentar. Óbvio, também, que é cedo para cravar qualquer veredito definitivo. Tudo é muito recente e rápido por lá. Os próprios chilenos estão atordoados e sem rumo. Assim, quem seria eu para iluminar as trevas, não é mesmo?

O Brasil não me parece na iminência de uma situação destas, mas também não dá para descartar algo parecido em um futuro relativamente próximo. Por quê? Simples. Com Lula solto, agitando as massas, e com a economia titubeante (e não há como ser diferente, após a hecatombe petista), e com um presidente como Jair Bolsonaro — e seus filhos e partidários malucos; uma gente que apaga fogo com gasolina — não é minimamente possível descartar um cenário assim.

Para piorar, grande parte da imprensa não se cansa de fomentar a insatisfação, e como uma via de mão-dupla, Bolsonaro não se cansa de dar motivos. Isso sem contar com a guerrilha virtual entre bolsominions e petralhas, que sobra até para a parcela equilibrada da população, pejorativamente chamada de “isentões”, apenas por não serem brutos no trato e truculentos no pensamento, além de não rezar pela cartilha de nenhum mito ou pai dos pobres.

Por fim, não podemos nos esquecer do esforço contínuo dos nossos políticos e governantes em produzir doses diárias de desprezo pelo povo, de humilhação à sociedade que lhes sustenta, de corporativismo, fisiologismo e concessão de benefícios e privilégios espúrios, diuturnamente estampados nas nossas fuças, através das manchetes dos veículos de informação.

Encerro, finalmente, com a seguinte provocação: O Chile de hoje seria o Brasil de amanhã?

E já respondo:

A depender do STF, do Congresso Nacional e do Palácio do Planalto, com a luxuosa ajuda de boa parte da imprensa e da esquerda brasileira, não tenho a menor dúvida… que sim.

Leia mais.