por Marcelo Seabra
Era de se esperar que a luta do país contra a corrupção da classe política gerasse um anti-herói para combatê-la. Não um mito, mas uma boa ficção. Ele é o protagonista de O Doutrinador (2018), longa nacional que chega aos cinemas essa semana com muita ação, adaptando a história em quadrinhos de mesmo título. Não bastaria ter um adolescente picado por uma aranha, ou um cientista atingido por um raio. Trata-se de um personagem genuinamente brasileiro, que surge do nosso contexto com características muito específicas nossas.
Outras histórias em quadrinhos já chegaram ao nosso Cinema, como O Menino Maluquinho, de Ziraldo, e a Turma da Mônica, que estreia com a adaptação live-action da belíssima Laços. O Doutrinador é o primeiro filme nos padrões de Marvel e DC, e lembra muito os personagens mais marginais das editoras, como o Justiceiro. A terceira temporada de Demolidor, que mostra que o Rei do Crime tem a cidade toda no bolso, vem muito à mente durante a sessão. Mas o longa consegue ter sua dose de originalidade e tudo flui muito bem, mostrando que o Cinema nacional não é só drama e comédia ruim.
Com várias alterações na criação de Luciano Cunha, cujo trabalho foi adaptado por Gabriel Wainer, o Doutrinador do Cinema surge quando um policial altamente qualificado de uma divisão especial sofre uma tragédia pessoal e vê na corrupção seu grande inimigo. Por causa das circunstâncias, Miguel vê a possibilidade de fazer justiça com as próprias mãos e não deixa barato. Logo, perseguir corruptos se torna a sua missão. Com uma máscara de gás e um capuz, ele se torna um assassino de colarinhos brancos, tentando equilibrar sua vida dupla e escondendo suas atividades ilícitas de seus colegas.
Na webcomic de Cunha, o Doutrinador é um ex-soldado da época da ditadura que aplica bastante crueldade em suas execuções. E as vítimas era políticos reais, como a ex-presidente Dilma Roussef e o senador Renan Calheiros. Para evitar processos, tudo no roteiro virou fictício, dos políticos, como o governador Sandro Corrêa, à cidade onde tudo se passa, Santa Cruz. A força policial da qual Miguel faz parte, ao invés de ser o BOPE ou o GATE, é a DAE: Divisão Armada Especial. Mas é muito fácil ver o Brasil ali, e alguns diálogos parecem diretamente inspirados em fatos. Temos até um sujeito de mais de 30 anos sendo chamado de “garoto” para justificar seus atos irresponsáveis e imaturos.
No papel principal, muito seguro e competente, está Kiko Pissolato, ator, escritor e empresário já visto diversas vezes na telinha, entre novelas e séries. Em sua grande oportunidade, Pissolato não deixa a desejar, respondendo bem nos aspectos talento e físico, mostrando um ótimo preparo. Ele inclusive dispensou o trabalho de dublês na maioria das cenas perigosas. Tainá Medina vive a hacker que acaba ajudando Miguel, além de trabalhar em uma loja de revistas em quadrinhos, numa meta-referência ao material-base. Pissolato e Medina lideram um grupo bem interessante que ainda inclui Samuel de Assis, Eduardo Moscovis, Tuca Andrada, Natália Lage, Eucir de Souza, Helena Ranaldi e Marília Gabriela, entre outros.
Tratando-se de um policial bem treinado, não é difícil aceitar as peripécias de Miguel. Tecnicamente, tudo funciona, da fotografia urbana aos efeitos especiais. Eticamente, muito deve ser discutido, mas não o é, e muita gente deve sair do cinema se sentindo vingada. Mesmo com soluções tão superficiais. Cenas convencionais do gênero, como o Doutrinador desviando de balas, não faltam. E nunca descobrimos o porquê do nome do personagem, atribuído pela mídia. Mas o filme é bem-sucedido o suficiente para nos fazer aguardar com ansiedade pela série que o canal Space filmou simultaneamente e que estreia na TV no segundo semestre de 2019.