por Marcelo Seabra
Em meio à polêmica que surgiu no Festival de Cannes, sobre filmes não exibidos em um cinema concorrerem a prêmios (assista aqui à problematização com a Larissa Padron), a Netflix segue firme distribuindo e produzindo, e a qualidade não deixa nada a dever para produções de outros estúdios. Com intervalo de pouco mais de um mês, dois longas chegaram ao serviço dividindo o tema: episódios próximos de reais em guerras recentes.
Desde 21 de abril, o público pode conferir o novo trabalho de Fernando Coimbra, diretor do ótimo O Lobo Atrás da Porta (2013). Ao contrário desse outro projeto, Castelo de Areia (Sand Castle, 2017) não é algo pessoal, Coimbra entrou com a produção andando, substituindo um colega que saiu. O roteiro, de Chris Roessner, é baseado nas experiências do próprio roteirista como atirador no Iraque. Ele diz ter tido a ideia de escrever a respeito após assistir a Platoon (1986), longa passado na guerra do Vietnã protagonizado coincidentemente por um Chris (Charlie Sheen).
Castelo de Areia não é um filme de grandes emoções, ou sobre um episódio especialmente relevante. É mais sobre o dia a dia dos soldados, sobre a banalidade da guerra e a falta de sentido em norte-americanos irem em massa para outro país visando salvar a população deles mesmos. Até que ponto essa invasão é justificável? Essa é uma questão que o mundo todo se fez. E os locais ressaltando o tempo todo que queriam que os americanos fossem embora, deixando-os resolverem seus próprios conflitos.
O protagonista criado por Roessner, que funciona como um alter-ego, é Matt Ocre (Nicholas Hoult, o Fera dos X-Men – acima), um jovem que se alista no exército para juntar dinheiro para a faculdade e é recrutado para o Iraque. Ele até tenta se safar, mas não consegue e logo se vê naquele calor escaldante, tendo que lidar com ataques terroristas e com a população, gente de bem que passa por apertos devido à situação de guerra. São poucos os que se metem em tiroteios e bombardeios, mas todos pagam por isso. Em meio a uma ação, o exército ainda faz o favor de interromper o fornecimento de água da cidade, o que obriga os soldados a trabalharem duro para restabelecê-lo.
Com um bom elenco (destaque para Logan Marshall-Green e Henry Cavill) e uma ótima fotografia (de Ben Richardson, de A Culpa É das Estrelas, 2014), Coimbra constrói um filme de pouca tensão, mas de um desenvolvimento de personagens bem adequado. As mudanças pelas quais Ocre passa são muito interessantes e parecem retratar bem a realidade – até onde podemos imaginar. É algo como Short Cuts (1993) ou mesmo Paterson (2016): o que importa não é a explosão ou o efeito especial, mas o que se passa naquela cabeça e as relações entre os personagens.
Outro a chegar na Netflix, este em 26 de maio, é War Machine (2017) – e não é da Marvel, não confundir com o colega do Homem de Ferro. Com roteiro e direção de David Michôd (de Reino Animal, 2010), o longa nasceu de um premiado artigo da revista Rolling Stone, de 2010, que acabou virando um livro dois anos depois. Ambos são de autoria do jornalista Michael Hastings, que teve a oportunidade de acompanhar a equipe do General Stanley A. McChrystal durante uma viagem pela Europa enquanto ele era comandante das forças militares no Afeganistão. Michôd achou melhor abandonar o nome real do general para evitar possíveis problemas legais, além de dar liberdade para criar ou alterar situações.
No papel principal, Brad Pitt (de Aliados, 2016) é o General Glen McMahon, um sujeito muito otimista e, ao mesmo tempo, bem limitado intelectualmente. A sua visão simplista de mundo, do tipo “se quisermos, vamos conseguir”, faz com que ele assuma uma missão impossível e seja alvo de críticas e piadas. Ele foi o sujeito encarregado pela administração Obama para “resolver” a situação no Afeganistão, país ocupado pelos americanos há oito anos que não demonstrava sinais de melhora.
Desde o início, a narração de Sean Cullen (a versão fictícia de Hastings, vivida por Scoot McNairy, de Batman vs Superman, 2016) deixa claro a forma de agir das autoridades políticas: ao esbarrar em uma situação impossível de ser resolvida, eles demitem o responsável e colocam outra pessoa no lugar. McMahon, recebendo a bomba no colo, reúne seus homens de confiança e ruma ao olho do furacão. Qualquer soldado raso é capaz de ver o problema que os Estados Unidos criaram, mas o general segue confiante de que vai entregar uma vitória e receber, como agradecimento, desfiles nas ruas de seu país.
Tecnicamente impecável, a produção derrapa por não definir um tom. No início do projeto, seria um drama sério, mas acabou virando algo como uma paródia, ou fábula. E Pitt assume uma forma de falar e de mexer a boca que uma pessoa normal só faria se estivesse imitando e ridicularizando alguém. Algo bem diferente, por exemplo, que o amigo dele, George Clooney, faz em Os Homens Que Encaravam Cabras (2009): uma interpretação séria em uma farsa divertida na qual todos parecem se levar a sério.
Pitt já se mostrou hábil em criar figuras patéticas, como em Bastardos Inglórios (2009) e Queime Depois de Ler (2008), e teve muito sucesso com elas. Mas, aqui, esse tipo não se encaixa, e fica um tanto estranho ter esse sujeito responsável por tanto. Isso, além de não ser crível. Apesar desse erro de cálculo de Pitt, os demais nomes do elenco estão muito seguros em seus papéis – principalmente Anthony Michael Hall (de Foxcatcher, 2014), que faz um general explosivo ainda menos brilhante que McMahon. Há outros nomes bem interessantes, como Ben Kingsley, Alan Ruck, Griffin Dunne, Topher Grace, Will Poulter e Emory Cohen, além de duas pontas ótimas.
Em meio a algumas bobagens simpáticas (como Mindhorn, 2016) e outras que são só bobagens (Adam Sandler…), a Netflix tem trazido e produzido obras de grande valor, o que aumenta a discussão que ficou acalorada em Cannes. Alguns têm chamado a atenção para o fato de que filmes sem um apelo claro, como uma celebridade no elenco, acabam soterrados por diversos outros, o que complicaria as chances deles de serem apreciados por um público maior. As perguntas são muitas, mas o que é inegável é que a Netflix tem colocado cada vez mais produções dentro das casas, o que resolve o problema de muita gente de acesso aos cinemas. E na língua que você escolher.