Um país que não conhece sua própria história está fadado a repeti-la. E o Cinema pode ser uma ferramenta poderosa nesse sentido. Principalmente ao contar uma história que permanece tão atual. A exemplo de Lamarca e outras combativas figuras brasileiras, chega a vez do baiano Carlos Marighella ganhar sua cinebiografia. O filme é de 2019, mas a pandemia e intrigas políticas fizeram com que ele só estreasse agora.
Escritor, político e poeta, Marighella entrou para a guerrilha urbana contra a ditadura brasileira e chegou a ser considerado o inimigo número um pelo governo. Uma imprensa em parte estrangulada, em parte conivente não fazia chegar aos cidadãos a extensão da tragédia que os militares trouxeram ao Brasil ao darem um golpe de estado. Juntando-se a diversos patriotas com valores similares, muitos deles estudantes, Marighella passou a acreditar que protestos e manifestações não levariam a nada. Mesmo porque qualquer movimento social era violentamente silenciado e diariamente opositores ao governo desapareciam. Expressões como “foi pro saco” são dessa época.
Hoje, já se conhece boa parte dos crimes cometidos por autoridades do período, como assassinatos e torturas em “departamentos de investigação”. O último bastião das “viúvas da ditadura”, que é a afirmação de que não houve corrupção sob a gestão dos sanguinários militares, caiu por terra faz tempo. À luz dos fatos, é preciso ser muito canalha para colocar panos quentes em tudo o que aconteceu. E a obra não faz vista grossa, mostrando boa parte desse horror.
É nesse contexto que o deputado Marighella passa à clandestinidade e passa a aplicar a política do “olho por olho”. A polícia atacava guerrilheiros, eles atacavam de volta. As práticas do grupo podem ser discutíveis, mas o fato é que algo precisava ser feito. O ponto de vista da época é mostrado claramente e o filme acompanha não só o protagonista, mas os personagens principais daquela tragédia. Algo como feito brilhantemente em O Que É Isso, Companheiro? (1997), filme com o qual esse dialoga.
Premiado por diversos de seus trabalhos como ator, o baiano Wagner Moura (de Wasp Network, 2019) faz sua estreia na direção e mostra que aprendeu bem o ofício com os cineastas com quem trabalhou. Muito elogiado por seu elenco e equipe, Moura demonstra segurança e escolheu um assunto que faz muito sentido hoje. Claro opositor do governo brasileiro atual, o diretor faz paralelos essenciais e contundentes entre os dois períodos, ambos marcados pela violência, corrupção e estupidez.
À frente do elenco, Seu Jorge vive o líder guerrilheiro (ambos acima). Dando seus pulos no Cinema desde que estreou com Cidade de Deus, em 2002, o cantor cumpre bem o seu papel, tentando dar leveza a diálogos que, em alguns momentos, parecem discursos. Entre nomes mais e menos famosos, temos Luiz Carlos Vasconcelos, Adriana Esteves, Herson Capri, Humberto Carrão e Bruno Gagliasso, único prejudicado pelo personagem estereotipado. O delegado Lúcio parece ser um composto de figuras que tocaram o terror durante a ditadura, sendo o mais notório o delegado Sérgio Fleury. Se dessem profundidade a ele, poderia parecer uma tentativa de humanizar um monstro. Então, o roteiro cai na armadilha oposta.
Baseado no livro de Mário Magalhães, o roteiro de Marighella, escrito por Moura e Felipe Braga (de Trash, 2014), cobre bem os principais pontos que se espera da vida do biografado. Algumas críticas dizem que não há X ou Y, ou que não se aprofunda em algum. O que se vê é um filme que não transforma Marighella num herói romântico. Pelo contrário, ele é passível de erros, excessos, e descontrai o ambiente quando possível. Uma figura muito necessária em tempos em que um grupo faz o que quer, comprando apoios de parlamentares que estão à venda, calando outros e, novamente, contando com a conivência de boa parte da classe militar, que deveria zelar pelo país.
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