Billie Holiday ganha voz na pele de Andra Day

Gravada em 1939 pela fantástica cantora americana Billie Holiday, a música Strange Fruit fala claramente da perseguição a negros, que eram mortos e pendurados em árvores, sendo eles próprios as “frutas estranhas”. Considerada hoje uma das canções mais importantes de todos os tempos, nos anos 40 ela trouxe muitos problemas a Holiday, que fazia questão de cantá-la sempre e chamar atenção para a causa. Este é o foco de The United States vs. Billie Holiday (2021), lançado pelo Hulu.

Na verdade, este deveria ser o foco do filme, que logo cai na mesma armadilha de outras cinebiografias e abraça o mundo. Outro problema comum a este tipo de obra é a necessidade de se adotar um vilão, uma figura que atormenta a protagonista e é rasa como um pires (o agente de Garrett Hedlund, de Operação Fronteira, 2019). Dessa forma, o roteiro de Suzan-Lori Parks (baseado no livro de Johann Hari) vai pulando entre os eventos que considera mais relevantes, construindo um quadro por vezes confuso que dificilmente envolve o espectador.

Em meio a tantas falhas, o grande trunfo do diretor Lee Daniels (de Obsessão, 2012) é sua atriz principal, merecidamente lembrada no Oscar, no Globo de Ouro e em diversas outras premiações. Andra Day teve poucas e rápidas participações como atriz até então, como em Marshall (2017), o que explica o receio de Daniels em contratá-la. Ela tem uma carreira mais estabelecida como cantora, já tendo inclusive sido indicada a Grammys. Se tratando de um filme sobre Billie Holiday, esse era um talento necessário – outra a ter interpretado Holiday foi a também cantora Diana Ross (em O Ocaso de Uma Estrela, 1972).

Como acontece em diversas outras cinebios, a intérprete da protagonista é muito superior ao filme. Se vale a conferida em The United States vs. Billie Holiday, é muito devido ao trabalho de Day. A voz, os movimentos, a aparência, tudo devidamente calculado para emular Lady Day, apelido de Holiday (coincidentemente). O figurino e a recriação dos anos 40 são impecáveis, pontuados por uma trilha interessante e salpicada de clássicos de Holiday, como Strange Fruit e All of Me. Na voz de Andra Day.

Constantemente abusada pelos homens de sua vida, a Holiday do filme fica numa espécie de meio do caminho. O roteiro quer que a vejamos como uma mulher forte, dona de seu destino. Ao mesmo tempo, tem diversas recaídas nas drogas e corre atrás de sujeitos que a agridem e a exploram. O tom segue indefinido do início ao fim. Um ponto positivo a se ressaltar é a situação vivida por Jimmy Fletcher (Trevante Rhodes, de Caixa de Pássaros, 2018). Buscando uma oportunidade profissional, ele se deixa usar contra sua própria raça. Não é algo muito explorado pelo roteiro, mas tem seus momentos.

Lembrado no Oscar apenas pela indicação de Day, The United States vs. Billie Holiday é muito menos do que a cantora merecia. Ao final da sessão, dá vontade de fazer uma busca na internet e entender melhor a biografia dela. E é bastante indicado que se conheça mais músicas que ela imortalizou, como You’ve Changed, Blue Moon e muitas outras.

A semelhança é grande e o talento de Andra Day, também

Marcelo Seabra

Jornalista e especialista em História da Cultura e da Arte, é mestre em Design na UEMG com uma pesquisa sobre a criação de Gotham City nos filmes do Batman. Criador e editor de O Pipoqueiro, site com críticas e informações sobre cinema e séries, também tem matérias publicadas esporadicamente em outros sites, revistas e jornais. Foi redator e colunista do site Cinema em Cena por dois anos e colaborador de sites como O Binóculo, Cronópios e Cinema de Buteco, escrevendo sobre cultura em geral. Pode ser ouvido no Programa do Pipoqueiro, no Rock Master e nos arquivos do podcast da equipe do Cinema em Cena.

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