por Marcelo Seabra
Depois de ter várias indicações a prêmios e levar vários deles, A Vida Invisível (2019) chega aos cinemas já com grande destaque, cercado de expectativa devido ao barulho causado. Com uma trama passada nos anos 50, no Rio de Janeiro, o longa acompanha duas irmãs que são separadas quando jovens e envelhecem sem notícias uma da outra, enquanto sofrem na pele todo o machismo da sociedade de então. Talvez fosse mais adequado que o título viesse no plural, mas a generalização resume melhor o lugar da mulher naquele contexto.
Eurídice (Carol Duarte) e Guida (Julia Stockler) são cúmplices ao driblarem as proibições do pai português (Antônio Fonseca). Uma o tem como tradicional, enquanto a outra usa adjetivos menos respeitosos. A mãe (Flávia Gusmão) não apita e as meninas aprendem desde cedo que terão que lutar muito para realizar seus sonhos. Entre erros e acertos, acompanhamos suas vidas, invisíveis frente o domínio dos homens. A mulher vivia sobre o julgo do pai até se casar, apenas trocando de “senhor”. Quem ousasse sair dessa lógica era tida como uma vergonha para a família.
De uma forma bem crua, o diretor Karim Aïnouz (de Praia do Futuro, 2014) monta um quadro triste, no qual a mulher serve apenas para ser mãe e satisfazer sexualmente o marido. As cenas de sexo, sem qualquer sensualidade, incomodam, e fica claro que foram filmadas com esse propósito. Esse é apenas um dos aspectos com os quais a mulher tem que se acostumar. Não importa se o homem é durão e posicionado (como o pai) ou se é um bobão atrapalhado (como o marido de Eurídice, vivido por Gregório Duvivier): qualquer regra imposta por ele, por mais estúpida ou cruel, vira lei.
Duarte e Stockler, ambas com pouca experiência na televisão, dão shows. Mesmo com um elenco bem equilibrado, elas brilham até nos momentos mais introspectivos – ou principalmente nestes. Duvivier evita construir um estereótipo, mostrando como podemos conviver com pessoas aparentemente bacanas, mas que sufocam as esposas e têm atitudes reprováveis. O experiente Fonseca mostra que existe sim uma grande preocupação do pai pelo bem da família, mas seus conceitos são extremamente distorcidos. O uso de cores saturadas busca trazer a história para o hoje, reforçando sua atualidade, e a bela fotografia urbana de Hélène Louvart cria cenários adequados, de belas paisagens a quartos opressivos.
O início de A Vida Invisível é um pouco arrastado e cansativo. Logo, as coisas começam a andar e a ficarem mais interessantes, fugindo da “cara” de novela para tomar contornos mais sérios e impactantes. A trama prende o espectador, mesmo sendo ligeiramente previsível, porque o que importa aqui não é o destino, mas a jornada. Acompanhar as vidas dessas mulheres fortes – outras cruzam os caminhos das irmãs – é difícil, perceber o papel aos quais elas são relegadas é revoltante. Mais ainda por ser tão real e tão atual. Mais para o final, somos agraciados pela presença de Fernanda Montenegro (acima), que não precisa fazer muito esforço para passar emoção.
O Rio de Janeiro é pano de fundo para a história e a autora do livro que serviu como fonte, Martha Batalha, é pernambucana. No entanto, o lugar, aqui, é o menos importante, todo o Brasil se enquadra. Houve vitórias dos movimentos feministas, claro, podemos notar diferenças entre a sociedade de então e a atual. Mas estamos longe de um ponto ideal, há muito caminho pela frente. A Vida Invisível esfrega essa verdade na nossa cara e está aí o motivo do sucesso mundial que ele tem atingido.