HBO recria Chernobyl com perfeição

por Marcelo Seabra

Arrogância e burrice, isoladas, costumam causar muitas desgraças à humanidade. Quando se juntam, então, são infalíveis. Chernobyl (2019) é uma nova produção da HBO que prova essa máxima com excelência. Com uma reconstituição de época impressionante e um orçamento capaz de recriar uma explosão terrível de forma crível, a série de cinco episódios narra os acontecimentos que levaram à maior catástrofe nuclear da nossa história. Milhares de pessoas morreram devido ao acidente e ainda hoje há quilômetros na Europa onde se é proibido ir, devido ao nível de radiação.

Em 26 de abril de 1986, o reator 4 da Usina V. I. Lenin, em Chernobyl, explodiu durante um teste de segurança e isso teve uma série de consequências. Diversos gases e partículas radiativas foram jogados no ar. Todos que estavam próximos foram contaminados, não só em Chernobyl, mas também na vizinha Pripyat e onde mais o vento levou. A região, hoje ao norte da Ucrânia, virou uma “zona de exclusão”, abocanhando partes do território da Ucrânia, Bielorrússia e Rússia.

Então símbolo do avanço soviético, a Usina de Chernobyl era a menina dos olhos do governo. Qualquer manobra bem executada lá era praticamente sinal de sucesso profissional, além de ser um orgulho para o Partido Comunista. Essa necessidade de aparecer pode ter levado os chefes da usina (acima) a meterem os pés pelas mãos. Mostrados na série como os grandes vilões, cada um compõe um tipo raso: o diretor Viktor Bryukhanov (Con O’Neill) era o burocrata otimista, o engenheiro-chefe Nikolai Fomin (Adrian Rawlins) foi cegado pela ambição e o engenheiro-chefe adjunto Anatoly Dyatlov (Paul Ritter) deixou sua autoconfiança virar arrogância, que o tornou incapaz de reconhecer seu erro.

Apesar de reforçar certos estereótipos, como essa visão sobre os responsáveis e a onipresença da garrafa de vodka, a série segue um caminho quase irretocável. Temos três personagens principais que, sozinhos, são boa parte dos méritos da obra. Jared Harris (o Rei George IV de The Crown) reina com um papel digno de prêmios: ele é Valery Legasov, o cientista chamado pela junta governamental para acompanhar os trabalhos pós-explosão e dar solução ao caso. Na verdade, ele seria o nome técnico usado para acalmar os ânimos pelo mundo, já que o governo da União Soviética não queria virar vidraça para a opinião pública – especialmente, para os Estados Unidos.

Outro que está em um grande momento é Stellan Skarsgård (o Professor Selvig dos Vingadores). Com um arco rico, que talvez seja o melhor da série, o burocrata Boris Shcherbina era um político inexpressivo e o governo o indica para colocar panos quentes no acidente da usina. Era para ser uma missão simples e o arrogante Shcherbina já chega dando ordens, tratando todos como empregados. Sua relação com Legasov e os fatos que se revelam fazem com que ele repense sua postura. E fecha o trio principal Ulana Khomyuk, vivida por Emily Watson (de Kingsman 2, 2017), a única personagem fictícia dentre os mais importantes. Ela representa os vários cientistas que colaboraram com Legasov no período. Watson, como sempre, passa grande segurança, como se tivesse nascido para o papel.

Correndo por fora, mas tão relevante quanto os colegas, está Jessie Buckley (de Taboo). Como Lyudmilla Ignatenko, ela representa os civis atingidos, sem informações sobre seus amigos e parentes. O marido dela (Adam Nagaitis, de O Passageiro, 2018) era um bombeiro destacado para ajudar no incêndio da usina. Contaminado, ele é levado a um hospital e ela corre atrás, ignorando normas de segurança. Os Ignatenko são apenas dois num universo de vários impactados. Não é possível chegar a um número final devido não só ao fato de ser impossível definir quem foi atingido, em todo aquele lado da Europa, mas também porque o governo soviético não queria que essa informação fosse revelada.

Abarcando os vários personagens sociais envolvidos, Chernobyl pinta um quadro completo sobre o acontecido. Alguns diálogos são expositivos, situando o público, mas nada que incomode. E muito foi falado sobre o que seria fato e o que seria liberdade dramática. A BBC chegou a fazer uma matéria detalhando essas diferenças entre realidade e ficção. A verdade é que não há nada mais terrível que a realidade, ficção nenhuma chega perto do que o homem é capaz de causar quando sua ambição passa da conta. Os muitos trabalhadores desfigurados, consumidos pela radiação por dentro e por fora, que o digam.

O vento contaminou mais de 1600 km ao redor

Marcelo Seabra

Jornalista e especialista em História da Cultura e da Arte, é atualmente mestrando em Design na UEMG. Criador e editor de O Pipoqueiro, site com críticas e informações sobre cinema e séries, também tem matérias publicadas esporadicamente em outros sites, revistas e jornais. Foi redator e colunista do site Cinema em Cena por dois anos e colaborador de sites como O Binóculo, Cronópios e Cinema de Buteco, escrevendo sobre cultura em geral. Pode ser ouvido no Programa do Pipoqueiro, no Rock Master e nos arquivos do podcast da equipe do Cinema em Cena.

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