Victoria e Abdul diverte com uma amizade diferente

por Marcelo Seabra

Em 2010, chegou às mãos de um historiador o diário de um certo Abdul Karim, que seria apenas mais um indiano se não fosse um fato curioso: ele passou 14 anos ao lado da Rainha Victoria como seu professor e amigo. Essa é a história retratada em Victoria e Abdul – O Confidente da Rainha (Victoria and Abdul, 2017), longa que reúne a grande Judi Dench ao diretor Stephen Frears pela terceira vez.

Além de ter vivido no Cinema outras nobres ficcionais e reais, Dench foi a própria Rainha Victoria em Sua Majestade, Mrs. Brown (Mrs. Brown, 1997), filme que retrata a amizade bem próxima da monarca com um serviçal escocês, John Brown (Billy Connolly). Desta vez, encontramos a rainha amuada, anos depois da morte de Brown e de seu marido, Albert. Em 1887, seria comemorado o Jubileu de Ouro, os cinquenta anos de Victoria no poder, e foi quando ela conheceu o novo amigo.

Abdul Karim (Ali Fazal, de Velozes e Furiosos 7, 2015) trabalhava em uma prisão em sua Agra natal registrando os nomes dos coitados. Uma das comemorações do Jubileu era presentear a rainha com uma moeda valiosa, o mohar, como uma espécie de agradecimento por ela ser a Imperatriz da Índia. Claro que isso era arranjado pelos oficiais britânicos, já que nenhum indiano, oprimido pelo Império, iria tomar parte nisso. Karim e Mohammed (Adeel Akhtar, de The Night Manager) são recrutados e passam dois meses num barco para ajudarem a dar à cerimônia realismo.

Chegando no palácio, em meio a tanto luxo, Karim fica encantado pela rainha, e a sua falta de decoro a encanta de volta. Nasce aí uma amizade que incomoda a todos que frequentam a realeza, e entendemos que Victoria está em um ninho de cobras. Seu próprio filho, Bertie (Eddie Izzard (da série Hannibal), a quer declarada incapaz ou morta, para assumir logo o trono. Nesse cenário, um indiano, de uma casta inferior e pele marrom, sofre todo tipo de preconceito. O colega conterrâneo o alerta constantemente, doido para voltar para casa, mas Karim entra cada vez mais naquele universo.

Escolado em produções de época, assim como nas contemporâneas, Frears dirige tudo com muita classe, evitando sentimentalismo e derrapadas no humor, que segue sem exageros. Reconstituições de cenários e figurinos são impecáveis, marcados por uma trilha sonora discreta, tudo combinando. O elenco, prioritariamente inglês (com Michael Gambon como o primeiro-ministro, além do recém falecido Tim Pigott-Smith), está muito bem, e Dench sempre dá show. Ao lado de uma parceira tão competente, Fazal empalidece, e seu personagem segue um caminho perigoso, que o torna um pouco presunçoso, orgulhoso.

Os palacianos fizeram questão de apagar todo e qualquer registro da passagem do indiano, mas um sobrinho dele guardou seu diário. Com o documento histórico em mãos, Shrabani Basu cruzou as informações ali descritas com outras fontes e escreveu o livro que serviu de base para o roteiro de Lee Hall (de Cavalo de Guerra, 2011). Quando avisa se tratar de uma história real, o filme alerta: “a maior parte”. Fica claro que liberdades são tomadas, ou para preencher buracos de registros ou para fins dramáticos. Logo, a obra não deve ser tomada como uma aula de história. Como filme, funciona muito bem.

O real e o filme, muito próximos

Marcelo Seabra

Jornalista e especialista em História da Cultura e da Arte, é atualmente mestrando em Design na UEMG. Criador e editor de O Pipoqueiro, site com críticas e informações sobre cinema e séries, também tem matérias publicadas esporadicamente em outros sites, revistas e jornais. Foi redator e colunista do site Cinema em Cena por dois anos e colaborador de sites como O Binóculo, Cronópios e Cinema de Buteco, escrevendo sobre cultura em geral. Pode ser ouvido no Programa do Pipoqueiro, no Rock Master e nos arquivos do podcast da equipe do Cinema em Cena.

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