Julieta é mais uma mãe de Almodóvar

por Marcelo Seabra

Depois de escrever e dirigir uma série de filmes instigantes, Pedro Almodóvar acostumou mal seu público, que passou a esperar sempre brilhantismo. Mas, como outros colegas igualmente prolíficos, não dá para ser gênio todo ano. Depois de alguns trabalhos questionáveis, o espanhol lança agora Julieta (2016), um estudo de personagem que retoma alguns de seus temas favoritos, dentre eles, o principal: a mulher.

A Julieta do título é uma mulher amargurada devido ao sumiço da filha há mais de uma década. E o grande problema é que não há nada que indique crime, pelo contrário: a filha optou por deixar a mãe e não dar mais notícias. A trilha à Hitchcock e a construção da atmosfera deixam no ar uma dúvida, mas tudo leva a crer que foi opção mesmo. E Julieta parece estar resignada, o que muda quando ela tem notícias de que a filha está viva, bem e até tem filhos. A referência à tragédia não para no cineasta inglês, passa pela escritora Patricia Highsmith e o famoso trem de Pacto Sinistro, pela literatura clássica grega e até pela imagem do mar, responsável por tantas desgraças.

Até receber essa novidade, ela parecia estar tocando a vida e havia até topado se mudar para Portugal com o parceiro. Mas a possibilidade de um contato com a filha faz seu mundo girar e é aí que começamos a conhecer os fatos passados – através de uma carta escrita a quem já sabe a maior parte do conteúdo, o que é estranho. Este é um dos problemas do longa: explicar coisas que não precisariam ser explicadas, já que o interlocutor estava envolvido na situação. Diálogos expositivos também não são raros. O Almodóvar diretor continua afiado, com enquadramentos, passagens e recursos gerais muito interessantes. O uso das cores, por exemplo, é algo forte em sua filmografia e aqui não é diferente, já que o azul e o vermelho reforçam humores e momentos de vida. O azul é mais frio, até depressivo, enquanto o vermelho representa a paixão, a emoção.

O problema de Julieta é o Almodóvar roteirista. Adaptando para seu país e costurando três contos de uma premiada escritora canadense, Alice Munro, ele mostra que não tem pudores de usar material de terceiros, e nem é a primeira vez. A questão é a falta de inspiração para resolver melhor situações aparentemente simples, ficando com a saída preguiçosa de explicar tudo verbalmente. Algumas coincidências também podem incomodar, já que personagens cruzam os caminhos uns dos outros de maneira improvável. Mas uma grande sacada ajuda a manter as peças grudadas e a fazer o resultado funcionar: duas atrizes para viverem a protagonista, e duas grandes profissionais. Ambas estreantes na filmografia do diretor, mas colegas na novela Hospital Central.

Como as versões mais experiente e mais jovem de Julieta, Emma Suárez e Adriana Ugarte, respectivamente, conseguem imprimir facilmente as emoções necessárias ao momento, e o filme ganha muito. As duas não são parecidas fisicamente, além da cor do cabelo, o que não causa problema algum. Pelo contrário, marca bem a transição entre as fases mais importantes de Julieta, quase como se fossem duas pessoas mesmo. O segmento em que uma passa a ser a outra, inclusive, é bem dinâmico, fazendo o público aceitar a mudança com naturalidade.

Se Julieta é uma mulher bem desenvolvida e tridimensional, o mesmo não pode ser dito dos homens da vida dela. Para balancear com uma mulher forte e verossímil, Almodóvar acabou criando dois pretendes um tanto idealizados. Tanto o personagem de Darío Grandinetti (de Fale com Ela, 2002) quanto o de Daniel Grao (de Fim dos Tempos, 2012) são carinhosos, educados, presentes e várias outras características que podem levar a críticas relacionadas a sexismo. Por ser real, Julieta tem defeitos, o que os dois parecem não ter. Até o pai dela, que pode ser criticado à primeira vista por manter uma amante, acaba visto com simpatia por cuidar da esposa doente. Completa o elenco principal uma atriz amuleto de Almodóvar, Rossy de Palma, que trabalha com ele no sétimo de seus vinte filmes. Marian, outra mulher com mais profundidade, é responsável por momentos cômicos, mas sempre como uma mãe com ciúmes do quase filho.

Longe de ser a bomba apregoada por certos críticos lá de fora, Julieta foi bem recebido no Festival de Cannes, onde estava em competição, e chega agora ao circuito comercial. Teria sido o primeiro trabalho do diretor falado em inglês, mas ele acabou desistindo devido a limitações de língua e clima, já que o Canadá de Munro é muito frio. Depois da decisão pela Espanha, o projeto ganhou forma e seguiu, com a autenticidade do espanhol nativo de Almodóvar.

Julieta, a mãe e a filha

Marcelo Seabra

Jornalista e especialista em História da Cultura e da Arte, é atualmente mestrando em Design na UEMG. Criador e editor de O Pipoqueiro, site com críticas e informações sobre cinema e séries, também tem matérias publicadas esporadicamente em outros sites, revistas e jornais. Foi redator e colunista do site Cinema em Cena por dois anos e colaborador de sites como O Binóculo, Cronópios e Cinema de Buteco, escrevendo sobre cultura em geral. Pode ser ouvido no Programa do Pipoqueiro, no Rock Master e nos arquivos do podcast da equipe do Cinema em Cena.

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  • Devo conferir esses dias. Bom saber que os elementos da direção de arte continuam firmes e fortes. Bela crítica Sr. Seabra.

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