Robocop chega ao século XXI

por Marcelo Seabra

Recebida desde o primeiro momento pelos cinéfilos com muita desconfiança, a refilmagem de Robocop (1987) acabou se mostrando uma bem pensada reinvenção do personagem. Com o avanço dos recursos técnicos e deixando roupas e penteados oitentistas para trás, o novo Robocop (2014) consegue seguir um caminho diferente de seu antecessor e pode agradar até mesmo ao fã mais xiita do novo clássico de Paul Verhoeven. É raro uma refilmagem, ainda mais de uma obra tão recente, ser tão bem sucedida e ter a coragem de tomar rumos diferentes, fugindo do lugar comum para ter uma identidade própria.

O ponto de partida das produções é o mesmo: Alex Murphy, um policial honesto e corajoso, se encontra à beira da morte e pode ser salvo por uma nova tecnologia usada por uma grande corporação para criar super policiais, o que renderia muitos milhões de dólares aos envolvidos. A partir dessa premissa, já podemos notar diferenças importantes. A primeira é a execução do policial ter se tornado menos pessoal, mesmo que mandada por um indivíduo específico. No original, que exaltava a violência como poucos, Murphy é torturado por uma gangue inteira e tem seu corpo mutilado calmamente. Agora, com um “limpo” atentado a bomba no lugar da execução sádica, a impressão que se tem é que o futuro é mais séptico, tudo é motivado apenas por negócios, sem sentimentos envolvidos. A outra diferença é apresentar uma jornada do protagonista que segue o trajeto oposto: o novo Robocop tem sua consciência intacta e vai sendo anulado de acordo com a necessidade de seus mantenedores, ao contrário do outro, que era uma máquina se redescobrindo humana.

Os Estados Unidos são a polícia do mundo e mandam seus robôs para todos os lados, algo que os próprios americanos não apóiam. Um senador se coloca contra o uso de máquinas na manutenção da segurança nas ruas e a opinião pública o segue. Isso dificulta o trabalho dos executivos da Omnicorp, que só podem atuar fora das fronteiras. O papel da corporação é ainda mais importante para a trama e mais atual, mostrando como, no futuro, empresas serão mais importantes até que países. Outro fator que ganha muita força nessa nova versão é o poder da mídia, cujo lado podre é representado por um apresentador muito similar aos que vemos na televisão. Pat Novak, vivido de maneira acertadamente exaltada por Samuel L. Jackson (de Django Livre, 2013 – acima), mostra como distorcer fatos e criar vilões (e heróis, por conseqüência), deturpando de cara lavada o papel do jornalismo. É triste que muito do que é podre na Detroit de 2028 já pode ser encontrado hoje.

Para os brasileiros, este Robocop tem um outro chamariz: o diretor é ninguém menos que José Padilha, que ganhou notoriedade entre a crítica com o documentário Ônibus 174 (2002) e ficou realmente famoso entre o grande público com o sucesso Tropa de Elite (2007), que ganhou uma continuação três anos depois. Com roteiro do até então não filmado Joshua Zetumer, Padilha mostra mais uma vez ter personalidade até nos enquadramentos aparentemente mais simples, e no envolvimento com questões sérias, como a relação entre poder e corrupção e a questão da identidade. O que faz de uma pessoa um ser humano? Ter componentes biológicos, seu cérebro ou seu coração? É importante ressaltar que, apesar desse grande destaque para discussões filosóficas, não falta ação na obra. Ouvir o rock progressivo da banda Focus em um tiroteio, por exemplo, é inusitado e funciona muito bem. A trilha, inclusive, é um charme à parte, com Sinatra, Clash e o tema imortal de Basil Poledouris.

À frente do elenco, Joel Kinnaman não faz feio. Sueco, ele apareceu para o mundo na série de TV The Killing e demonstra ter carisma suficiente para ser mais que um mero coadjuvante. Mas aparecer ao lado de Gary Oldman (o Comissário Gordon de Batman) é bem difícil, ainda mais quando o veterano precisa demonstrar raiva. É muito interessante ver o contraste entre integridade (o médico de Oldman) e cinismo, representado pelo poderoso empresário do sumido Michael Keaton. É engraçado ainda notar a piadinha sobre o uso do preto, que remete a Batman Begins (2005), sendo que o próprio Keaton já viveu o herói. Jackie Earle Haley (o Freddie Krueger mais recente) faz o militar esquentadinho e repetitivo (na piada com o Homem de Lata) e Abbie Cornish (de Sem Limites, 2011) é a sofrida Clara Murphy, que autoriza o “uso” do marido moribundo no projeto na esperança de salvá-lo.

Padilha e equipe tomam uma série de decisões corretas que levam o Robocop de 2014 a ser uma releitura do de 1987, um recomeço para uma franquia já muito explorada e que, agora, demonstra ainda ter fôlego. Os tempos são outros, as questões se atualizam e o Cinema acompanha as mudanças. Muita gente deve ter torcido o nariz por ter o longa de Verhoeven muito nítido na memória. Mas não faltam méritos ao trabalho de Padilha, que conseguiu a proeza de pegar algo cult, manter a essência e mudar todo o resto. E não importa qual dos dois é melhor.

Kinnaman assume o papel que foi de Peter Weller

Marcelo Seabra

Jornalista e especialista em História da Cultura e da Arte, é atualmente mestrando em Design na UEMG. Criador e editor de O Pipoqueiro, site com críticas e informações sobre cinema e séries, também tem matérias publicadas esporadicamente em outros sites, revistas e jornais. Foi redator e colunista do site Cinema em Cena por dois anos e colaborador de sites como O Binóculo, Cronópios e Cinema de Buteco, escrevendo sobre cultura em geral. Pode ser ouvido no Programa do Pipoqueiro, no Rock Master e nos arquivos do podcast da equipe do Cinema em Cena.

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  • Confesso que era o ultimo filme que eu pretendia assistir. Depois dessa crítica, com certeza assistirei. Abraços.

  • A propósito, quero registrar que o site está melhor a cada dia. Parabéns ao Marcelo e colaboradores.

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