por Marcelo Seabra
Imortalidade pode parecer uma dádiva, mas o próprio Conde Drácula já provou que é uma maldição. Ainda mais quando se está sempre do lado mais fraco, aquele destinado a perder. O jornalista e cineasta Luiz Bolognesi, sempre trazendo luz a questões históricas e políticas, usa um personagem imortal para visitar algumas lutas marcantes da sociedade brasileira em Uma História de Amor e Fúria (2013), uma animação adulta que chega esta semana aos cinemas. Se animações nacionais já são raras, imagine uma para um público mais velho, que, mesmo que em situações ficcionalizadas, ainda utiliza passagens e personagens reais!
Para começo de conversa, a animação utilizada resolve, mas se prende à linguagem dos quadrinhos e acaba ficando monótona, dependendo do efeito entre as cenas para ganhar agilidade. Recuperando uma antiga tradição nacional, há bastante violência e nudez. Mas, enquanto escancara o sangue de lutas e tiros, se constrange ao mostrar as partes íntimas dos personagens. Para complementar, são utilizados efeitos sonoros que em vários momentos se mostram exagerados, chegando a incomodar pela altura. Durante as passagens em um lugar que poderia ser considerado o inferno, ou umbral, a tela fica escura, dando a entender que há algo acontecendo ali que não precisa ficar explícito. Na verdade, não está acontecendo nada, é apenas um maneirismo desnecessário. E não deixa de lembrar a novela A Viagem, aquela repetida várias vezes na TV.
No início, somos apresentados a um índio tupinambá que enfrenta a chegada dos europeus e as intrigas entre eles, já que portugueses e franceses não se dão. Nesse primeiro trecho, é estabelecida a dinâmica que vai reger os seguintes: o protagonista tem uma alma gêmea e um antagonista, e eles estão fadados a se reencontrarem de novo, e de novo, e de novo… De 1500 e pouco, pulamos para 1838, ano que explodiu no Maranhão a revolução Balaiada, liderada por Manuel Francisco “Balaio”. Junto com outros colegas igualmente injustiçados, Balaio ataca o status quo dos brancos endinheirados. O próximo ponto é o auge da ditadura, nos idos de 1970, quando nosso herói é um estudante em plena guerrilha contra o governo. O último trecho se passa em 2096, quando o grande problema da humanidade é a falta de água, e por isso mesmo o elemento vira moeda e sinônimo de poder.
A estrutura, como pode-se perceber, é bem parecida com o que vimos em A Viagem (a dos irmãos Wachowski, de 2012): episódico e distante do público. A visão maniqueísta é um problema, já que o roteiro deixa sempre claro quem é bom e quem é mau, tudo muito bem definido, ingênuo. Na primeira parte de No Limite da Realidade (Twilight Zone: The Movie, 1983), somos apresentados a um sujeito racista que, como castigo, é obrigado a passar por três situações na condição do oprimido, como os judeus na Segunda Guerra. Uma História de Amor e Fúria não traz essa ironia, virando apenas a saga de um indivíduo extremamente azarado. E, assim como o Old Georgie de A Viagem, há uma figura maligna, um espírito antigo que parece perseguir o herói e está sempre disposto a fazer os humanos acessarem seu pior lado. É ele, inclusive, o responsável pela imortalidade do índio.
Para o elenco de dubladores, Bolognesi contratou três nomes muito bem estabelecidos da nossa dramaturgia. Selton Mello (de O Palhaço, 2011) é, sem dúvida, o que menos funciona. O tom de voz empregado por ele não é adequado a qualquer tipo de personagem, e passa longe do que seria necessário aqui. A narração é feita com sussurros, os diálogos não passam qualquer tipo de segurança. Ele seria bom como um traidor, um covarde, o elo fraco, e não como o herói do projeto. Na medida certa, está Camila Pitanga (de Eu Receberia as Piores Notícias de Seus Lindos Lábios, 2011), a musa dos outros vértices do triângulo. E o antagonista fica a cargo de Rodrigo Santoro (de O Último Desafio, 2013), uma voz que é pouco ouvida, mas cumpre a contento seu papel. Há pontas interessantes de Bemvindo Sequeira e Paulo Goulart, bem curtas.
Bolognesi, ao lado da esposa e sócia Laís Bodanzky, tem vários trabalhos comerciais de sucesso, como os roteiros de Bicho de Sete Cabeças (2001) e As Melhores Coisas do Mundo (2010), mas eles também se engajam em trabalhos socialmente significativos, como o Cine Mambembe, um cinema itinerante que viajou o Brasil. Uma História de Amor e Fúria (anteriormente conhecido como Lutas) é uma boa tentativa de unir esses dois lados: algo relevante, que possa fazer o espectador refletir, e que não deixe de atingir lucro, tão necessário para a manutenção da sétima arte, ainda mais sem incentivos de grandes estúdios, como acontece fora. Fazer isso tudo através de uma animação, terreno pouco explorado é ainda mais louvável, o que só aumenta a expectativa pelo próximo trabalho de Bolognesi.