Daniel Day-Lewis faz um Lincoln impecável

por Marcelo Seabra

Daniel Day-Lewis. Se é preciso uma razão para conferir Lincoln (2012), está aí. A nova produção de Steven Spielberg conta com mais uma atuação fantástica deste artista que, a exemplo de Meryl Streep, merece um prêmio por cada trabalho que entrega. O longa é um dos nove indicados pela Academia em 2013 como Melhor Filme e acumula outras 11 indicações, inclusive para Melhor Ator e Diretor. O ex-presidente americano já foi retratado em diversas obras, provando claramente que é uma das figuras históricas mais populares dos Estados Unidos. E pode dar ao ator seu terceiro Oscar, todos na mesma categoria.

Nascido em Londres e dono de um sotaque bem característico da cidade, Day-Lewis fez um ótimo trabalho para soar como Lincoln, natural do Kentucky. A construção do personagem foi extremamente detalhada, da fala à postura, sempre curvada. Lincoln era, além de muito alto, um tanto alongado, e parecia estar sempre abatido, com o cansaço impregnado nos ossos, como ele mesmo descreve. O diagnóstico médico real indicava melancolia, talvez agravada pela perda de dois dos quatro filhos que teve com a esposa, Mary Todd Lincoln. Um terceiro filho ainda morreria pouco depois do pai, levando a mãe a ser internada em uma instituição psiquiátrica para lidar com tantas tragédias. Apesar disso tudo, o presidente tinha um senso de humor apurado, dado a contar longas e engraçadas histórias, o que vemos claramente em cena.

O roteiro de Tony Kushner mostra Lincoln a partir dos quatro últimos meses de sua presidência, quando buscava incessantemente uma forma de acabar com a guerra civil que já havia destruído milhares de famílias. Ao mesmo tempo, ele trabalhava por uma aprovação da emenda constitucional que acabaria com a escravidão. A eleição fora garantida pelos votos nos cidadãos do norte e os sulistas, cuja economia girava em torno das grandes fazendas, não podiam nem ouvir falar em liberdade para os negros. Kushner trabalhou com Spielberg em Munique (Munich, 2005) e foi indicado ao Oscar pelos dois trabalhos, mais uma vez mostrando cuidado com os fatos históricos. Desta vez, no entanto, foram tomadas mais liberdades para fins dramáticos, como dizer que o rosto do presidente já estampava moedas de 50 centavos, quando isso aconteceu apenas anos após a morte dele.

Outra característica marcante no longa é a fotografia de Janusz Kaminski, abusando dos contrastes entre claro e escuro. Os cômodos chegam a ser deprimentes, sempre com muita penumbra, e por vezes o filme fica com jeito de ser mais velho do que é. A figura do protagonista, comprida e envolta em sombras, chega a lembrar o Nosferatu de 1922, o que faz imaginar como seria um filme de terror de Spielberg hoje. Os poucos cenários de guerra remetem a O Resgate do Soldado Ryan (Saving Private Ryan, 1998), com corpos distribuídos e destruição por todos os lados. Já algo que chega a irritar é a trilha sonora, que transforma momentos que deveriam ser grandiosos em piegas. John Williams tem um pé no sentimentalismo barato, como vimos (ou ouvimos) em Cavalo de Guerra (War Horse, 2011), e isso às vezes se torna mais evidente.

O Lincoln do filme, como vários americanos o vêem hoje, é tido como o “homem mais puro da América”, como é descrito por determinado personagem. Jovens declamam seus discursos decorados de terem ouvido apenas uma vez. Autodidata, ele estudou direito e se formou advogado, para depois se tornar o homem mais poderoso daquele país. E, então, se tornou um herói, o que o filme não se cansa de reforçar, fazendo parecer que ele sozinho resolveu tudo: a guerra e a escravidão. A corrupção empregada na votação da emenda, com uma compra de votos descarada, não macula a imagem do líder, já que ele é “só” o mandante, sem se envolver diretamente. E quando o suborno falha, o próprio Lincoln intervém, apelando aos princípios de seu interlocutor, o que soa bem forçado.

O lado família do longa fica mais discreto, dando maior ênfase à política e à politicagem. Dos dois filhos vivos, o mais velho (vivido por Joseph Gordon-Levitt, de Looper, 2012) tem aquele velho embate de gerações com o pai. Cada um parece saber o que é melhor para o rapaz e eles não se entendem, sendo o alistamento na guerra o principal motivo de atrito. A esposa, Mary (Sally Field, do novo Homem-Aranha, de 2012), tem um gênio forte e não se importa de ir contra o marido, mas aparece pouco e acaba ficando com uma imagem de encrenqueira e mandona. Enquanto a família carecia de melhor desenvolvimento, os aliados políticos roubam a cena, com destaque para Tommy Lee Jones (de Um Divã para Dois, 2012) e David Strathairn (de A Informante, 2010). Os inimigos se limitam a serem malvados e a fazerem malvadezas, e pronto. Há participações interessantes de gente como Jared Harris, Hal Holbrook, Michael Stuhlbarg, Jackie Earle Haley e James Spader.

No final, Spielberg parece soltar o freio do sentimentalismo e o nível de açúcar sobe. Os muitos discursos do protagonista servem mais para explicar para o espectador o que está acontecendo do que qualquer outra coisa, segurando a história um pouco – o que pode ter causado a longa duração (150 minutos). As intrigas e negociações conseguem segurar a atenção do público, além da presença magnética de Day-Lewis, discreto e poderoso. Como vários outros bons filmes vistos recentemente, não é dos melhores, mas tem o melhor dos intérpretes.

Ator e diretor lançam o longa pelo mundo

Marcelo Seabra

Jornalista e especialista em História da Cultura e da Arte, é atualmente mestrando em Design na UEMG. Criador e editor de O Pipoqueiro, site com críticas e informações sobre cinema e séries, também tem matérias publicadas esporadicamente em outros sites, revistas e jornais. Foi redator e colunista do site Cinema em Cena por dois anos e colaborador de sites como O Binóculo, Cronópios e Cinema de Buteco, escrevendo sobre cultura em geral. Pode ser ouvido no Programa do Pipoqueiro, no Rock Master e nos arquivos do podcast da equipe do Cinema em Cena.

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