A vida de Pi mereceu um livro e um filme

por Marcelo Seabra

Dando continuidade a uma carreira marcada pela diversidade, Ang Lee partiu para a adaptação de um livro sobre um garoto indiano que vive uma jornada fantástica. Depois de se voltar para os costumes de diferentes povos, filmar um herói dos quadrinhos e até retratar um polêmico romance homossexual, Lee filmou As Aventuras de Pi (Life of Pi, 2012), do livro de Yann Martel, lançado em 2001. Usando o recurso 3D para dar profundidade a algumas lindas paisagens, Lee entrega uma obra esteticamente perfeita e com passagens bem marcantes.

De cara, no trailer, as imagens já causavam sensação e davam uma amostra da beleza que estava por vir. A reconstituição de parte da Índia é fantástica, tanto de Pondicherry, a “Riviera Francesa do Leste”, quanto da área mais pobre. A família de Pi (nascido Piscine Molitor Patel) tinha posses, seu pai era um empresário, e ele cresceu no zoológico deles, em meio aos animais. Tendo sido educado como hindu, Pi descobre o cristianismo e ainda chega a estudar o islamismo, praticando as três religiões. Durante uma crise econômica, o pai decide vender suas propriedades e embarcar para o Canadá, onde poderia vender os animais e ter uma vida no mesmo padrão com o qual estavam acostumados.

Como o cartaz entrega, Pi acaba no meio do oceano, em um pequeno barco, com nada menos que um tigre de Bengala como companheiro de viagem. A jornada que o jovem vive poderia colocar em xeque a fé de muitos, mas Pi se mantém humilde e obediente, à disposição de qualquer que seja a divindade. Por algum motivo, muitos parecem ter entendido que se tratava de um filme infantil. Não era normal o tanto de crianças na sessão (apesar de que o maior incômodo é sempre causado por adultos inconvenientes). É sobre um adolescente, mas não é necessariamente para este público. As questões que preocupam Pi são universais, como as populares “que sou eu?”, “para onde vamos?” e “quem é responsável por isso tudo?”.E é importante ressaltar que não é preciso ser religioso para apreciar o longa. E as respostas não se resumem a “42”, nem tampouco a um encontro na cabana. O título nacional, além de afastar o filme da obra que lhe deu origem, descaracteriza a ideia de magnitude que cerca Pi: ao invés de A Vida de Pi, ficou parecendo sessão da tarde, daquele tipo com “uma galerinha que apronta todas”.

A exemplo de Náufrago (Cast Away, 2000), em que Tom Hanks tinha como companheiro Wilson, a bola de vôlei, Pi se relaciona com o tigre Richard Parker (todos os nomes esdrúxulos são devidamente explicados) e isso o mantém são. Ao mesmo tempo em que funciona como antagonista, o tigre extremamente bem feito acaba sendo um amigo, algo que faz com que Pi continue agarrado a sua esperança. Os dois atores que vivem o protagonista, tanto o iniciante Suraj Sharma quanto Irrfan Khan (quase não visto em O Espetacular Homem-Aranha, 2012), fazem um ótimo trabalho, e o elenco de apoio não fica para trás. Milagre que Dev Patel (de Quem Quer Ser um Milionário?, 2008) não apareça, já que ele parece ser o indiano de plantão e ainda divide o sobrenome com o personagem.

Nos estágios iniciais de desenvolvimento, o diretor ligado ao projeto era ninguém menos que Manoj Nelliyattu Shyamalan, ou M. Night Shyamalan, também nascido em Pondicherry. Passaram outros e a adaptação acabou ficando com Ang Lee, cineasta bem estabelecido que em mais de uma oportunidade já demonstrou ter sensibilidade para contar boas histórias, independente da escala. O roteiro de David Magee (de Em Busca da Terra do Nunca, 2004) é bem amarrado, às vezes até muito explicativo. O tom de fábula permite que os aspectos religiosos da trama sejam suavizados e não incomodem. Um filme que propõe debates interessantes e respeita a posição de cada envolvido, sem pregar em momento algum, já merece a nossa atenção, independente de seus outros méritos.

As imagens maravilhosas são um grande diferencial de As Aventuras de Pi

Marcelo Seabra

Jornalista e especialista em História da Cultura e da Arte, é mestre em Design na UEMG com uma pesquisa sobre a criação de Gotham City nos filmes do Batman. Criador e editor de O Pipoqueiro, site com críticas e informações sobre cinema e séries, também tem matérias publicadas esporadicamente em outros sites, revistas e jornais. Foi redator e colunista do site Cinema em Cena por dois anos e colaborador de sites como O Binóculo, Cronópios e Cinema de Buteco, escrevendo sobre cultura em geral. Pode ser ouvido no Programa do Pipoqueiro, no Rock Master e nos arquivos do podcast da equipe do Cinema em Cena.

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