Poe vira personagem em suspense morno

por Marcelo Seabra

Muito antes de conhecermos os quadrinhos de James O’Barr ou a adaptação deles ao cinema (em 1994), o corvo já era um animal macabro, símbolo de possíveis tragédias. Não foi à toa que o notório Edgar Allan Poe (1809-1849) o escolheu como mote para um longo e belo poema publicado em 1845. Agora, o escritor virou personagem e deve descobrir a identidade de um serial killer em um longa intitulado justamente O Corvo (The Raven, 2012). Apesar de ter tido uma recepção fria no exterior, a obra até consegue divertir, mesmo sem fugir do esperado.

É sabido que Poe (ao lado) foi encontrado pelas ruas de Baltimore, bem debilitado, dizendo coisas sem sentido. Quatro dias depois, seu corpo desistiu e ele faleceu aos 40 anos. Há especulações do que o teria levado à morte, desde álcool a cólera, mas nada foi conclusivo. Temos, aí, a brecha para o desenvolvimento de uma história de suspense que pretende utilizar elementos das tramas sangrentas e macabras do próprio Poe para ficcionalizar o que poderia ter acontecido.

Quando o filme começa, descobrimos que o hoje reverenciado autor (vivido por John Cusack – ao lado) era tido como um bêbado dado a arroubos esporádicos de genialidade. Nesses momentos, escreveu obras como O Corvo, O Poço e o Pêndulo, o Mistério de Marie Roget e Os Crimes da Rua Morgue. No resto do tempo, escrevia críticas literárias atacando até nomes já estabelecidos, além de consumir altas doses de álcool. A falta de reconhecimento o incomodava, e a atenção que buscava veio da pior forma: um inspetor da polícia (Luke Evans) lembra das histórias de Poe quando começa a investigar um crime monstruoso e inicialmente impossível. Uma senhora e sua filha foram assassinadas brutalmente em um apartamento aparentemente lacrado, com porta trancada e janelas fechadas a pregos, bem como no terror da rua Morgue. E este foi apenas o primeiro de uma série de assassinatos inspirados na obra de Poe.

Quando o escritor coloca toda a sua capacidade investigativa a serviço da lei, é inevitável a comparação com o grande detetive da literatura que também andou frequentando os cinemas. Mas O Corvo é mais lento e menos arrojado que os Sherlock Holmes de Guy Ritchie. James McTeigue, depois de aprender o ofício com os irmãos Watchowski, comandou V de Vingança (V for Vendetta, 2005) e Ninja Assassino (Ninja Assassin, 2009), duas produções que passaram longe de ter uma grande aceitação. E aqui falta uma dose de inovação, um mistério mais intrincado. Tudo é muito simples, entregado de mão beijada, o que traz pouca importância ou urgência à trama.

O elenco, o figurino, as locações, tudo está tecnicamente impecável. John Cusack (de A Ressaca) parece um pouco fora de lugar, mas consegue compor um personagem crível, com seus momentos engraçados e tristes se alternando. O problema é que, às vezes, cabe ao público decidir qual é um e qual é o outro, o tom não é bem definido. Luke Evans (de Os Três Mosqueteiros, 2011 – ao lado, com Cusack) traz uma paixão e uma dedicação que fogem aos inspetores normalmente retratados na literatura, como o incompetente Lestrade de Conan Doyle. A Alice Eve (de Sex and the City 2, 2010) cabe pouco, basta ficar em perigo e mostrar as emoções básicas de uma mocinha clássica. E o pai da garota, o rico Capitão Hamilton, é defendido pelo sempre competente Brendan Gleeson (de Protegendo o Inimigo, 2012), que não tem muito como aparecer mais.

Um problema para O Corvo, além de um assassino insosso, pode ser o fato de ser amarrado com fatos históricos comprovados por documentos e depoimentos. Em Do Inferno (From Hell, 2001), por exemplo, as brechas são bem preenchidas e não ficam pontas soltas, o que deixa o espectador com a pulga atrás da orelha. Os anúncios que Poe publica no jornal, por exemplo, nunca existiram, e se faz necessária a invenção de provas. Isso enfraquece a premissa, já deixando claro que, por mais que se trate de uma ficção assumida, aquilo nunca poderia ter sido a real explicação para os últimos dias de Poe. Lá se vai o estímulo da audiência.

Até os Simpsons já usaram o poema O Corvo – para uma paródia, claro!

Marcelo Seabra

Jornalista e especialista em História da Cultura e da Arte, é atualmente mestrando em Design na UEMG. Criador e editor de O Pipoqueiro, site com críticas e informações sobre cinema e séries, também tem matérias publicadas esporadicamente em outros sites, revistas e jornais. Foi redator e colunista do site Cinema em Cena por dois anos e colaborador de sites como O Binóculo, Cronópios e Cinema de Buteco, escrevendo sobre cultura em geral. Pode ser ouvido no Programa do Pipoqueiro, no Rock Master e nos arquivos do podcast da equipe do Cinema em Cena.

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  • Também achei o Cusack indeciso, cômico na hora errada...mas pra mim foi ótimo entretenimento, mais suspense teria me tirado o sono. ;)

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