Há filmes que não pedem licença: entram em cena com a disposição de encarar o que costuma ser varrido para debaixo do tapete. Homem com H (2025) é um deles. O longa, dirigido por Esmir Filho, não se interessa por suavizar arestas nem por oferecer um retrato confortável de seu personagem central. Ao contrário: escolhe o confronto direto, apostando que a verdade, quando bem encenada, é mais potente do que qualquer verniz conciliador.

No centro de tudo está Jesuíta Barbosa, que aproveita uma das melhores oportunidades de sua carreira: interpretar o cantor Ney Matogrosso. Seu trabalho não se limita à imitação ou ao gesto externo: há um mergulho corporal e emocional que sustenta o filme inteiro. Barbosa constrói um personagem pulsante, contraditório, às vezes desagradável, mas sempre humano. A homossexualidade não surge como “tema”, e sim como identidade vivida, com desejo, culpa, liberdade e medo coexistindo no mesmo espaço. É uma atuação que exige entrega e que encontra no ator alguém disposto a se expor o necessário.

O elenco ao redor acompanha esse movimento com grande segurança. Não há atuações infladas, nem personagens tratados como escada dramática. Cada figura, algumas bem famosas, que atravessa a trajetória do protagonista parece existir para além da função narrativa, o que reforça a sensação de um mundo vivo, atravessado por afetos, tensões e silêncios. O filme confia nos atores e, em troca, recebe interpretações maduras e precisas, na medida certa.

A grande coragem de Homem com H está na forma como encara seus temas mais espinhosos. A homossexualidade é mostrada sem filtros morais ou didatismo, e a AIDS surge com o peso histórico e emocional que lhe é devido, sem melodrama nem exploração sensacionalista. O filme olha para esse período de frente, recusando tanto a idealização quanto o discurso higienizado que costuma transformar dor em lição edificante.

Esmir Filho opta por uma narrativa fragmentada, que acompanha o personagem em diferentes momentos de sua vida. Essa escolha, na maior parte do tempo, funciona como reflexo de uma existência marcada por rupturas e reinvenções constantes. No entanto, é também aí que reside o único tropeço mais evidente do filme. O salto entre acontecimentos importantes, especialmente na reta final, cria uma sensação de episódios. Quando o espectador começa a assimilar plenamente o peso do percurso, o filme simplesmente termina, de forma abrupta, quase seca demais para uma história que parecia pedir algum tipo de conclusão que pontuasse que a vida de Ney segue a pleno vapor.

Ney, Esmir e Jesuíta no lançamento do filme

Marcelo Seabra

Jornalista e especialista em História da Cultura e da Arte, é mestre em Design na UEMG com uma pesquisa sobre a criação de Gotham City nos filmes do Batman. Criador e editor de O Pipoqueiro, site com críticas e informações sobre cinema e séries, também tem matérias publicadas esporadicamente em outros sites, revistas e jornais. Foi redator e colunista do site Cinema em Cena por dois anos e colaborador de sites como O Binóculo, Cronópios e Cinema de Buteco, escrevendo sobre cultura em geral. Pode ser ouvido no Programa do Pipoqueiro, no Rock Master e nos arquivos do podcast da equipe do Cinema em Cena.

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