Chegou aos cinemas essa semana Som da Liberdade (Sound of Freedom, 2023), longa que aguardava por lançamento há algum tempo por falta de fundos e que acabou sendo abraçado por uma produtora cristã, que providenciou o necessário para a estreia em vários países. De cara, a obra foi elogiada e defendida por personalidades norte-americanas de direita, como o ex-presidente Donald Trump e sua família, gerando polêmicas e discussões sobre as reais realizações do protagonista.
Para situar o leitor, a trama acompanha Tim Ballard (Jim Caviezel, o Jesus de A Paixão de Cristo, 2004), um agente do Departamento de Segurança Interna dos Estados Unidos que, depois de prender vários pedófilos, consegue finalmente resgatar um garotinho vítima do tráfico sexual no país. Ao ter contato com a família do menino, Ballard descobre que a irmã dele também foi sequestrada e resgatá-la se torna sua missão de vida. Sem apoio de seus superiores, ele pede demissão e segue sozinho, contra tudo e contra todos.
Em 2015, com a chegada do então mais recente trabalho do diretor Clint Eastwood, Sniper Americano, (re)começou-se uma discussão sobre o uso do Cinema como propaganda. Pode um filme tecnicamente impecável ter vários defeitos de ordem ideológica? Assim como o longa de Eastwood, esse Som da Liberdade tem um roteiro altamente questionável. A começar por tratar seu protagonista como um super-herói perfeito, infalível e 100% abnegado, que aceita ficar longe da família por tempo indeterminado e correr o risco de deixar os filhos órfãos por desconhecidos em um país que não é o dele.
Ballard, no filme, não titubeia por um segundo e parece uma força incontrolável. Já o Ballard real foi criticado várias vezes por exagerar seus feitos, e é bom apontar que quase tudo o que vemos na tela é baseado em relatos do próprio. Assim como Chris Kyle, o sniper americano, ele seguiu por conta própria e se tornou uma espécie de justiceiro, atropelando leis por um suposto bem maior. Quando se coloca a famigerada frase “baseado em fatos”, fica impossível não gerar esse tipo de discussão e não ficar pensando no que de fato deve ter acontecido.
Tanto Ballard quanto seu intérprete, Caviezel, já apoiaram publicamente os malucos do QAnon, grupo que acredita que há uma seita envolvendo políticos do Partido Democrata e estrelas de cinema, que sequestrariam crianças para usar um hormônio gerado na tortura delas para se manterem jovens. Dentre outras insanidades, eles dizem que essa seita domina o alto escalão norte-americano, o presidente Joe Biden já teria morrido e o salvador de todos nós seria ninguém menos que o canalha Trump, ídolo deles.
Se Som da Liberdade começa bem razoável, seu roteiro vai se tornando cada menos crível. Tomar conhecimento desses fatos, digamos, externos ao filme faz com que ele fique ainda pior. A organização sem fins lucrativos fundada por Ballard para combater o tráfico infantil já foi acusada até de levar os louros de ações não realizadas por eles. Até o momento, o longa já faturou dez vezes o que gastou para ser produzido, com igrejas e grupos políticos comprando dezenas de ingressos que não necessariamente são usados, prática conhecida como “pay it forward”, na qual os ingressos são comprados e ficam disponíveis para quem não tem condições de arcar com o custo. Sessões ficam esgotadas e as salas, muitas vezes, vazias.
Muitas conspirações foram inventadas em torno de Som da Liberdade, até que uma grande rede de cinemas estaria sabotando-o – o que não tem qualquer fundamento e já foi desmentido até pelos responsáveis pelo filme. O diretor e corroteirista, Alejandro Monteverde (de Little Boy, 2015), já disse em entrevistas que seu filme não tem qualquer ligação com o QAnon, mas seu astro vai na contramão. É triste porque desvia a conversa do conteúdo, focando nas controvérsias e dividindo o público antes mesmo de assistir. Para os bolsos dos produtores, no entanto, a atenção é muito bem-vinda.
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