por Laís Simão
Em 21 de agosto de 2012, Jorge Bodanzky foi entrevistado pelo inesquecível Antônio Abujamra em seu programa Provocações, transmitido pela TV Cultura em rede nacional. Quando o entrevistador questiona sobre a maior transgressão que o diretor já praticou, e ainda o estimula a dizer verdade, ou o público pensaria os piores tipos de transgressão, Bodanzky responde que é fazer cinema. “Fazer cinema é um ato de transgressão. Porque se a arte não for transgressora, ela não tem sentido”.
Na constante busca desse sentido, onze anos depois, no interior de Minas Gerais, entre as serras mineiras, enquanto a chuva fina molhava as típicas casas coloniais da famosa Rua Direita, aconteceu a 26ª Mostra de Cinema de Tiradentes, que teve como temática o Cinema Mutirão. O tema veio da necessidade do esforço coletivo para construção de novas bases e a importância do reforço das já consolidadas estruturas do audiovisual brasileiro. A escolha do termo “mutirão” endossa a importância do coletivo, de modo que essa reconstrução se daria a partir da junção de forças em um contexto de precariedade, após o apagamento das instituições culturais e das políticas de fomento e incentivo ao cinema e à cultura nos últimos anos.
Com esse ímpeto, agora com 60 anos de cinema e 80 anos de vida, foi exibida na Mostra a mais recente obra de Bodanzky, o documentário Amazônia, a nova Minamata? (2022). Fugindo na estética “docudrama”, a fronteira entre documentário e ficção, traço frequente do diretor de Iracema – Uma Transa Amazônica (1974), o filme pretende demonstrar a relação entre os sintomas neurológicos apresentados pelo povo Munduruku e a contaminação por mercúrio, utilizado de forma indispensável e irresponsável pelo garimpo na região. Ainda, como a interrogação é enfatizada no próprio título, pretende questionar as semelhanças entre os acontecimentos na região amazônica e o desastre vivenciado pela comunidade japonesa em Minamata, severamente envenenada por mercúrio em 1954.
O projeto tomou forma quando o Bodanzky gravava a série Transamazônica – Uma Estrada Para o Passado” (disponível na HBO Max, 6 capítulos de 60min cada), em Jacareacanga, no Pará. A região é território da comunidade indígena Munduruku e, em meio às gravações, o diretor se deparou com uma grande assembleia de caciques, que discutiam sobre as barragens construídas na região. O que deu destaque à reunião das lideranças indígenas foi a presença de um médico, demonstrando eventual crise de saúde ou sanitária na região.
O território Munduruku está situado em regiões ricas em ouro, atraindo o garimpo ilegal para o local. Diante do adoecimento da população, as próprias lideranças solicitaram auxílio da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) para que investigassem o que estava acontecendo. Após análise dos sintomas, foi constatada uma grande demanda por cadeira de rodas, além de constante comprometimento neurológico, levando à desconfiança quanto às consequências de contaminação por mercúrio, substância utilizadas pelos garimpeiros na extração de ouro.
Acontece que esse mesmo quadro foi identificado na década de 50 em Minamata, uma pequena cidade no Japão. De forma irregular, uma indústria de plástico lançava dejetos contendo a mesma substância tóxica na baía que circundava a região, contaminando a biodiversidade local desde 1930. No entanto, apenas duas décadas depois, em 1956, foi constatado o primeiro caso de contaminação humana, demonstrando uma certa lentidão entre a contaminação dos rios e o aparecimento do primeiro sintoma. Embora o primeiro caso tenha demandado um longo período de tempo, logo a questão se tornou pandêmica, afetando diversos japoneses que viviam na região. A alta contaminação culminou para que a doença fosse conhecida como o “Mal de Minamata”.
O garimpo ilegal na região amazônica repete o mesmo padrão da indústria de plástico japonesa. Não se trata, pois, de mera semelhança sintomática, vez que a pesquisa realizada pela Fiocruz constatou a presença de mercúrio no sangue munduruku acima dos limites normais, bem como a contaminação dos rios da região. Portanto, a finalidade do documentário é a de alerta, sabendo que se trata de uma história repetida e que, diferente do Japão, novas medidas podem ser tomadas a fim de impedir outro desastre.
De uma sensibilidade incrível, 75 minutos de fotografia impecável que te leva a pisar em solos amazônicos, o documentário se tornou um instrumento poderoso, como uma voz aos indígenas após os últimos anos de invisibilização. Bodanzky, com essa obra, materializa um dos seus mais importantes trabalhos artísticos, não apenas pela transgressão anunciada dez anos antes, mas porque verdadeiramente entende que o Cinema é instrumento da sociedade civil organizada. Como um manifesto, não só de proteção aos indígenas, mas uma forma de reafirmar algo aparentemente esquecido nos últimos anos: a Amazônia é do Brasil e precisa ser preservada.
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