A certa altura do episódio inaugural da série O Ensaio (The Rehearsal), o solitário Kor, um professor do Brooklyn que sempre mentiu para seus amigos intelectuais sobre ter feito um mestrado, não creditado como personagem do programa – característica comum a todos os “atores” que aparecem na série – resume a personalidade de Nathan Fielder ao encontrá-lo pela primeira vez comparando-o a Willy Wonka: “Olha, ele tinha umas atitudes questionáveis, era muito misterioso”. Nathan, então, o interpela em tom ameaçador: “Eu sou o Willy? O vilão da história?”. Kor retruca, desconcertado: “Ele é um vendedor de sonhos, você está realizando o meu”.
Se nas versões de A Fantástica Fábrica de Chocolates, o egocentrismo de Willy Wonka (vivido com brilhantismo nas telas por Gene Wilder e Johnny Depp) faz com que o empresário recrie a realidade a seu ideal excêntrico de doçura em sua idílica indústria, não se importando com o destino das crianças que o visitam, aqui, Fielder recria seu parque pessoal de diversões não menos aterrorizante: o audiovisual. Seu objetivo é “ajudar” pessoas “normais” a recriarem histórias antecipadamente para que possam ter coragem, controlando imprevisibilidades e variantes, para um dia assumirem, a partir dos ensaios feitos com Fielder, as atitudes corretas a serem tomadas na “vida real”.
O diretor e comediante americano passou a última década testando os discursos sobre o mérito empresarial no choque entre o artificial e o real em seu programa Nathan For You (2013- 2017). Brilhantemente, em O Ensaio, o mesmo Kor, apresentado como um especialista em televisão e aqui representando também o público geral, afirma categoricamente desconhecer o programa, para decepção de Fielder.
Em O Ensaio, o diretor busca questionar o próprio audiovisual em sua era de reality shows. Os programas de realidade, a pretexto de mostrar o mundo real, acabam por criar narrativas tão, ou mais, roteirizadas que as obras de ficção tão características do cinema clássico hollywoodiano. Esse parece ser o paradoxo que encanta Fielder na construção de sua série: encontrar espontaneidade dentro da arte pensada, encenada e refletida ao mesmo tempo em que a realidade que, a priori, deveria ser espontânea, vai sendo construída como um roteiro arquitetado.
A partir de tal paradoxo, definir uma breve e simples sinopse de O Ensaio é tarefa das mais difíceis. São camadas sobre camadas de roteiro artificial em busca da espontaneidade real que verdadeiramente emociona o espectador, ao mesmo tempo que qualquer reação espontânea dos participantes do projeto moldam e guiam o roteiro a ser, meticulosamente, reconstruído. Não há uma cena em O Ensaio em que não se deva questionar a natureza do que está se vendo, tamanho é o absurdo de suas premissas e dos desdobramentos que se encadeiam na tela.
Nesse sentido, O Ensaio se apresenta, inicialmente, como mais um reality show daqueles a que comumente assistimos ao mudar de canal na televisão e que nos atrai pela premissa de mostrar pessoas e casos reais. E daí vem o primeiro estranhamento do espectador que assiste ao show na HBO Max e não zapeando pelos milhares de canais da televisão paga: mais do que o que estamos vendo, somos convidados a pensar o porquê de estar assistindo tal show. Logo de início, é como se o espectador estivesse assistindo a algo errado. Como se aquele programa não devesse estar ali.
Ao se iniciar o primeiro episódio, uma câmera com baixa qualidade, trôpega e com tomadas típicas da televisão norte-americana, em busca de foco nos rostos das pessoas reais em um programa de baixo orçamento, aparece na tela do streaming da HBO. A primeira sensação que o espectador tem ao entrar naquele mundo é a de estar assistindo a um programa no canal errado e isso é fundamental para a experiência de estranheza das normas e expectativas do audiovisual que Fielder quer (des)construir. Esse não-lugar da obra perante o que se espera é fundamental para guiar quem assiste no vale de estranheza do que vem a seguir.
O espectador é, então, introduzido ao que está assistindo pela voz em off de Nathan Fielder, Deus ex Machina do show, controlando a narrativa sobre a realidade do que se é autorizado a ver. A personagem Nathan Fielder é um diretor que busca pessoas reais que queiram ensaiar momentos importantes de suas vidas. Ele visa assumir o controle narrativo da vida do sujeito, organizando e controlando tal momento-chave em suas mínimas circunstâncias e apresentando o sucesso ou o infortúnio para todos os que assistem ao programa. Ao mesmo tempo, ele documenta a si mesmo fazendo o programa e o exibe a nós, sempre acrescentando uma camada de realidade dentro da realidade ficcional que constrói.
A questão é que à medida que os episódios avançam, Fielder não se contenta apenas com essa camada que, por si só, já seria interessante e complexa. Fazendo um programa dentro de outro programa sucessivamente, nada do que se vê parece de fato espontâneo, com Fielder controlando todas as narrativas criadas e apresentadas ao público. O expectador vê, assim, a fábrica de chocolates televisiva de Fielder, preso em um mundo onde ele, assim como Wonka, é o único a saber a saída e que, portanto, decide se vai ou não a oferecer, ou quando vai oferecê-la, ao espectador.
Fielder parece entender como ninguém o conceito da filosofia da arte contemporânea, principalmente em Rancière, para quem a arte se faz política não no tema que sugere em seu roteiro, mas, sim na partilha do sensível entre a obra e o espectador. Quando este último abandona a preocupação se o que ele está vendo é real ou ficção, o espectador emancipado, como nomeia Rancière, passa a partilhar a sensibilidade da obra, ao invés de decifrá-la. Em um mundo atual industrial cultural, onde toda obra precisa ser explicada para que o hype sobre ela se perpetue, Fielder convida quem assiste a O Ensaio a se libertar de entender racionalmente se aquilo que se vê foi planejado por um roteiro ou se aquilo a que se assiste foi espontaneamente obtido com, e por, pessoas reais, apenas entregando a humanidade das questões sugeridas pela fronteira da realidade e da ficção onde se está imerso. Busca-se a experiência artística como dissenso da realidade ao mesmo tempo que nessa supressão de racionalidade, a realidade e a ficção, em comum encontro, faz sentido na experiência de O Ensaio.
Geralmente, pensa-se que uma ficção-cientifica é falsa por ser uma obra inventada por alguém, enquanto um reality show mostra exatamente a realidade. Todavia, a busca pelo real, como vemos hoje nas redes sociais, não tem justamente criado uma vida artificial a ser compartilhada como espontânea? Nesse sentido, não seria a arte, principalmente o audiovisual, com todo o seu metódico planejamento para sair do papel, tão verdadeiro, ou até mais real, que a vida na realidade em plena contemporaneidade? Tais questionamentos norteiam O Ensaio ora como sugestão de Fielder ao público, ora como questão trazida a Fielder pelos atores em cena.
Saber o que é real ou o que é narrativamente construído faz diferença realmente perante uma experiência artística? É preciso entendê-la, ou ainda, que alguém ou algum crítico a explique para que a experiência da arte se faça? Fielder parece perceber que essa é a grande artificialidade que se faz sobre o público contemporâneo: a necessidade de que alguém interprete a partilha do sensível. Esta partilha, por si só, é a transgressão e, portanto, nela reside a realidade na arte. O que, paradoxalmente, essa crítica faz na busca de estimular que o público acesse a obra é aquilo que não se precisa realizar para a fruição de O Ensaio: a racionalização.
É interessante para o sujeito contemporâneo que alguém narrativamente o conduza ao que assistir. Fielder, ciente disso, também não se abstém de assumir esse papel. Por fim, se o espectador gostar desse texto, fica a questão: gostou porque esta crítica roteirizou seu gosto ou porque espontaneamente partilhou a sensibilidade da obra ao assisti-la? Afinal, existe realidade para fora de algum roteiro ou de alguma narrativa? Seja na arte, ou na vida fora dela, se ela de fato existir, Nathan Fielder parece pensar que não. Afinal, O Ensaio é o seu mundo. Sua fantástica fábrica.
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Que experiência fantástica, Vinny. Assitir a série, ler seu texto, questionar a série, questionar seu texto, questionar o fato de ter assistido a série, questionar o fato de ter lido seu texto. No fim, fruir as obras (a série do Fielder e o seu texto) foi uma experiência fantástica! Viva a arte, seja audiovisual, seja literária-filosófica!
Obrigado!