Num primeiro momento, dentro do possível, os estúdios Marvel tentaram manter seu Universo Cinematográfico com os pés no chão, lidando mais com a ciência (mesmo que exagerada) do que com elementos mágicos. Dessa proposta saíram Homem de Ferro, Capitão América e Hulk. Logo, precisaram explorar o espaço e lançaram Thor. Hoje, já numa quarta fase, o produtor Kevin Feige abraça sem problema algum o absurdo, o que nos leva a Shang-Chi e a Lenda dos Dez Anéis (Shang-Chi and the Legend of the Ten Rings, 2021), longa que, ao mesmo tempo que traz elementos difíceis de comprar, consegue ser divertido.
Num instante, acompanhamos dois amigos defendendo com afinco as funções de manobrista, o trabalho deles, “o emprego mais difícil do mundo”. No minuto seguinte, eles largam tudo e pegam um voo para a China, quando começamos a descobrir realmente o que está acontecendo. Shawn (Simu Liu, da série Kim’s Convenience) revela à amiga Katy (Awkwafina, de Oito Mulheres e Um Segredo, 2018) que ele é filho de um poderoso magnata chinês e viveu fugindo até hoje para não ser encontrado pelo pai. Inclusive, o nome verdadeiro dele é… Shang-Chi! (essa dava para prever!)
A partir desse fiapo esdrúxulo de ponto de partida, a Marvel nos apresenta a um novo capítulo de sua história, com uma mitologia completa que, habilmente, foi costurada aos filmes pré-existentes. Talvez para facilitar a aceitação pelo público, o roteiro acrescenta algumas pontas e participações especiais aos novos elementos que apresenta. Não vem ao caso estragar as surpresas do longa, basta pontuar que tudo flui bem. O criador dos Mercenários (The Expendables, 2010) e roteirista de Mulher-Maravilha 1984 (Wonder Woman 1984, 2020), Dave Callahan, assina o roteiro ao lado da dupla responsável por Luta Por Justiça (Just Mercy, 2019), Destin Daniel Cretton e Andrew Lanham. Uma mistura que misteriosamente deu certo.
Simu Liu tem carisma suficiente para segurar o personagem título, fazendo bem os momentos mais dramáticos e também as lutas mais elaboradas. No entanto, quem rouba o show é a colega dele. Awkwafina vai mais longe que ser apenas um alívio cômico, tendo grande importância para a trama além de causar praticamente todos as sequências engraçadas. Em meio a tanta gente se levando muito a sério, a atriz parece se divertir, cativando o público e causando, por que não, identificação. Afinal, ela é a pessoa “normal” pega numa situação completamente anormal. Outros destaques do elenco são os ótimos veteranos Tony Leung (de O Grande Mestre, 2013) e Michelle Yeoh (de Podres de Ricos, 2018, também com Awkwafina).
Assim como aconteceu com Pantera Negra (Black Panther, 2018), temos um herói que foge do branco padrão e o filme respeita os personagens, evitando os estereótipos nos quais as revistas em quadrinhos frequentemente caiam. Mesmo o vilão tem uma dualidade bem interessante, passando longe das críticas feitas à maioria das aventuras Marvel. Nas décadas de 60 e 70, era comum ter americanos escrevendo usando a visão de mundo estreita que eles tinham (tinham?). O roteiro de Shang-Chi usa elementos da fonte, mas mexe onde julga necessário e consegue chegar a um produto não racista. Se afasta, mas respeita o suficiente para não levar pedradas de fãs dos quadrinhos.
Ao contrário do que ocorreu em Pantera Negra, o diretor, Cretton, não consegue imprimir uma marca autoral no longa. Shang-Chi parece dirigido “pela Marvel”, como geralmente acontece, com uma mistura de várias referências cinematográficas. É como O Tigre e o Dragão encontra Curtindo a Vida Adoidado com um pouco de Mortal Kombat (alguém viu o golpe do Kung Lao?), tudo isso com um grande tempero Disney. É o primeiro filme da Marvel cuja influência do estúdio do Mickey fica muito clara, com várias criaturinhas adoráveis que já devem estar sendo vendidas nas lojas e um tom leve que lembra outras produções deles.
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