O roteirista e diretor Charlie Kaufman é outro grande nome a trabalhar em parceria com a Netflix, que produz seu longa mais recente. Engrossando uma lista que já conta com Scorsese, os irmãos Coen, Cuarón, Chazelle e Soderbergh, o premiado Kaufman quebra um jejum de cinco anos e lança Estou Pensando em Acabar Com Tudo (I’m Thinking of Ending Things, 2020), adaptação do romance de Iain Reid.
Quem conhece a obra de Kaufman sabe que vem algo surreal pela frente. Mas ele sempre ataca pontos interessantes do ser humano, usando metáforas e alegorias que podem facilmente ser compreendidas. Por mais que seus temas sejam bem ricos, ele sempre volta na questão dos relacionamentos, além de brincar com a percepção do público. Estou Pensando em Acabar Com Tudo leva essa brincadeira mais longe que qualquer outro longa que traga o nome de Kaufman.
Quando o filme começa, conhecemos um casal que se prepara para sua primeira viagem juntos, num namoro que parece ser recente. Daí, já vem a primeira interpretação possível do título: estaria um deles pensando em terminar? A narração da moça levanta essa possibilidade. Ao longo da sessão, levantamos uma outra hipótese também: estaria alguém considerando suicídio? Alguns diálogos ao longo da viagem vão colocar a paciência do espectador à prova e aí a nossa compreensão começa a ser desafiada. A lembrança de David Lynch é automática e inevitável, tendo em vista certos pontos em comum.
Ao chegarem em seu destino, encontramos os pais do rapaz, e a cada aparição deles, somos surpreendidos: eles estão com a aparência diferente, e suas ações e falas também não batem com as anteriores. A partir daí, o espectador já começa a ter algumas suspeitas do que estaria acontecendo. E não é nada muito complexo, quando se pára para pensar. Só foge do usual, o que mostra que os filmes de Charlie Kaufman são necessários.
Não muito conhecida, mas frequentemente elogiada, Jessie Buckley é excelente como a jovem que nos conduz. Vista há pouco em Chernobyl (2019) e em As Loucuras de Rose (Wild Rose, 2018), é a atriz irlandesa que representa quem está de fora, conhecendo a família de Jake. Completando o casal, Jesse Plemons é outro ótimo ator que volta e meia é visto em grandes papéis e produções (como em O Irlandês, 2019, e El Camino, 2019). Seu Jake acaba falando menos, mas sua força é tão importante para a trama quanto a de Buckley. Não a toa, lembra bem o Philip Seymour Hoffman de Sinédoque, Nova York (2008), estreia de Kaufman na direção.
Completando o quadro, temos David Thewlis (de Mulher-Maravilha, 2017) e Toni Collette (de Entre Facas e Segredos, 2019), dois fantásticos jovens veteranos que vivem seus personagens em situações diferentes e com muita veracidade. Aparentemente com pouca idade para ser mãe de Plemons, Collette brilha devidamente maquiada em vários estágios da vida. Sua relação com o marido feito por Thewlis é terna e crível, o que ganha mais pontos para o filme. As indas e vindas do jantar se tornam bem mais interessantes pelo trabalho dos intérpretes, destaque para Collette (uma especialista em jantares incômodos, como Pablo Villaça ressalta aqui).
Mesmo com vários elogios e outros muitos pontos a se exaltar, Estou Pensando em Acabar Com Tudo tem um problema: é chato! Muito chato! Ele vai e volta, parecendo que tudo é claramente pensado para ficar complicado, quando na verdade é tudo muito simples. Se Amnésia (Memento, 2000) foi criticado por usar um recurso de montagem para parecer ser mais interessante do que realmente era, Kaufman força mais esse artifício.
Com a fotografia maravilhosa de Lukasz Zal (de Guerra Fria, 2018), que faz um uso meticuloso de cores que tendem a nos situar, Kaufman parte para algo calculadamente difícil e nos confunde. Com várias referências a poemas, filmes e peças, ele constrói seus elaborados diálogos, que muitas vezes duram o suficiente para não sabermos mais o que estamos acompanhando ou onde chegamos.
Toda essa parte técnica impecável e as grandes interpretações do elenco acabam ficando em segundo plano quando o espectador está mais preocupado em entender o que está acontecendo. Ao contrário de roteiros anteriores, como Quero Ser John Malkovich (1999) ou Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças (2004), em que parte de algo real e se lança no extraordinário, Kaufman aqui se perde nas lembranças de seu personagem. Chega num ponto em que só queremos que aquilo tudo acabe.
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