Escritor tenta negar a História na Netflix

por Marcelo Seabra

Numa época em que alguns acham aceitável negar a gravidade de um vírus que vem matando milhares de pessoas pelo mundo, ou que é questão de opinião se determinado remédio é ou não eficaz contra o tal vírus, um filme como Negação (Denial, 2016) se faz imprescindível. Nele, tomamos conhecimento de um caso judicial que parece ficção e chegou ao fim em 2001. Ele reafirma que apenas ter convicção de algo não prova nada, a não ser talvez a imbecilidade ou falta de caráter de quem insiste em lutar contra os fatos.

Vivida com muita paixão por Rachel Weisz (de A Favorita, 2018), a professora de História Deborah Lipstadt lançou um livro no qual chama um escritor, David Irving, de negador do Holocausto, e usa outros adjetivos não muito lisonjeiros. Isso era uma descrição perfeita para o sujeito, mas ele não gostou da menção e a levou à justiça. Lipstadt se viu em uma situação em que precisava provar o que disse. Ou seja: se Irving mentiu, o Holocausto aconteceu. Seriam necessárias evidências. Por incrível que pareça.

No papel do pretenso historiador, temos o ótimo Timothy Spall (o Churchill de O Discurso do Rei, 2010), uma escolha fantástica da produção. Spall traz a falsa impressão necessária de credibilidade ao personagem, sempre muito amável e cordial, escondendo debaixo desses modos e da erudição uma pessoa odiosa e manipuladora. Ou, como em determinado momento ele é descrito, simplesmente um mentiroso. Afinal, já inventaram termos como pós-verdade e vemos frequentemente falarem em fake news para todo lado. Como o diabo, a mentira tem vários nomes.

Na equipe jurídica que representa Lipstadt, temos dois ótimos atores liderando. Nas práticas jurídicas inglesas de tribunal, há sempre dois advogados envolvidos: o que estrutura toda a parte teórica, no papel, e o que dá voz a tudo a isso. Andrew Scott (de Fleabag) é o solicitor, que é contratado pela professora, e Tom Wilkinson (de Titã, 2018) é o barrister, aquele que teria que olhar na cara de Irving. O escritor ainda se aproveita dessa diferença entre equipes – do lado dele é só ele – para se colocar como o Davi que luta contra Golias, tentando puxar para si a simpatia da opinião pública.

A justificativa de Irving para a ação é o prejuízo financeiro que ele teria tido, já que editores não se interessaram por suas ideias após ele aparecer nos escritos da professora. Ele chega a dizer que, para o público em geral, a definição de negador do Holocausto é como uma comparação com assassino ou pedófilo, o que teria destruído a reputação dele. A questão é que um criminoso como David Irving nunca deveria ter tido espaço para divulgar suas mentiras preconceituosas e sua reputação deveria ser exatamente essa: como a de um assassino ou pedófilo. Afinal, ele tenta reescrever a história tentando expiar e ocultar a culpa dos vilões. Já pensou se tentam fazer isso com a ditadura militar brasileira?

Scott e Wilkinson lideram o time legal

A memória em xeque

por Lívia Assis

Usualmente, um réu se apresenta em um processo contestando a ação pela qual está sendo julgado, apresentando uma defesa. Em Negação, Lipstadt é acusada por defender a verdade, ao passo que o autor da acusação deturpa acontecimentos reais. Esse drama histórico coloca em xeque o tema da memória.

A memória do Holocausto tem um duplo propósito: ao mesmo tempo em que serve como lembrança sobre o então maior crime contra a humanidade já cometido, funciona como mecanismo de construção de uma identidade coletiva entre o povo judeu. Mais do que um filme sobre um julgamento entre o que é moralmente certo ou errado, Negação mostra que negar uma memória coletiva de abrangência global é, acima de tudo, negar o discurso da história de um povo historicamente perseguido.

Fugindo do padrão de filmes com temática nazista-judaica, no qual são apresentadas as visões das vítimas e dos vilões, o drama baseado em fatos inova ao deixar a história falar por si só: as evidências são, em última instância, a verdade não deturpada.

Auschwitz-Birkenau vai sempre assombrar a humanidade

Marcelo Seabra

Jornalista e especialista em História da Cultura e da Arte, é atualmente mestrando em Design na UEMG. Criador e editor de O Pipoqueiro, site com críticas e informações sobre cinema e séries, também tem matérias publicadas esporadicamente em outros sites, revistas e jornais. Foi redator e colunista do site Cinema em Cena por dois anos e colaborador de sites como O Binóculo, Cronópios e Cinema de Buteco, escrevendo sobre cultura em geral. Pode ser ouvido no Programa do Pipoqueiro, no Rock Master e nos arquivos do podcast da equipe do Cinema em Cena.

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  • Isso me lembra de 100 milhões de mortos por todos os paises comunistas ( China, URSS, Cuba, Vietnam, Coreia do norte ) totalitarios e genocidas amplamente negados e ignorados pelos intelectuais brasileiros. Estou no aguardo de um filme que mostre essas barbaridades que fazem de Hitler um amador em matéria de assassinato em massa.

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