Cuarón se supera com Roma

por Marcelo Seabra

Depois de uma vitoriosa passagem por festivais e tendo arrecadado alguns milhares de dólares nos cinemas americanos, o novo trabalho do diretor Alfonso Cuarón chega à Netflix. Arrancando elogios também nas redes sociais, Roma (2018) foca em uma família para falar da vida. Aparentemente trazendo a banalidade do dia a dia, o roteiro, também de Cuarón, tem espaço para desenvolver seus personagens e as sutilezas falam mais que qualquer efeito especial. De forma bem delicada, o mexicano nos entrega a provável melhor obra distribuída pela Netflix.

Distanciando-se do vencedor de dois Oscars Gravidade (Gravity, 2013), com sua ambição e computação gráfica, o diretor se aproxima de um de seus primeiros trabalhos, E Sua Mãe Também (Y Tu Mamá También, 2001), um projeto de menores proporções que se preocupou mais com as relações humanas. Este novo trabalho acompanha uma empregada (a ótima estreante Yalitza Aparicio) de uma família de classe média-alta residente na Colônia Roma, bairro a oeste do centro histórico da Cidade do México. Sua vida é cuidar da casa, quatro filhos e do casal de patrões, aproveitando as poucas folgas para ir ao cinema e namorar.

O roteiro bem poderia ser baseado na infância de Cuarón, tamanho é o frescor com que os fatos são tratados – e, em partes, é. A fotografia em preto em branco, também assinada por Cuarón, nos proporciona essa proximidade. Mesmo se passando em outro país, em outro idioma (ou outros, contando o dialeto), a história poderia ser ambientada aqui. Algo como vimos em Que Horas Ela Volta? (2015), apenas sem a ênfase na diferença das classes sociais. A separação também ocorre aqui, principalmente quando Cleo se sente mais à vontade entre os meninos e logo é lembrada de seu lugar, mas não tem tanto espaço.

Mais trabalhada aqui é a questão da mulher e suas lutas diárias. Cleo tem seus problemas a resolver, assim como a patroa (Marina de Tavira), que está claramente passando por uma crise em seu casamento. É interessante notar que Cleo parece nutrir amor e gratidão por aquela família, mesmo quando ouve as insatisfações do patrão, mal disfarçadas pela esposa, que logo fecha a porta do quarto. Para nós, os espectadores, a impressão que fica é a de humilhação e submissão. Ou ela é muito inocente, ou escolhe aceitar a situação para ter um emprego e um teto, o que seria perfeitamente normal.

A casa onde eles moram é praticamente um personagem, ocupando um papel de importância. Sua geografia é bem delimitada e é até importante para certos trechos. A longa e estreita entrada de garagem nos causa riso, tensão, comoção. Resumindo: nos traz mais emoção que alguns dos humanos. O Ford Galaxie, carro sedã que sempre passa apertos para entrar na garagem, é outro “personagem” interessante, com quem nos preocupamos tanto quanto com as crianças.

Ao receber o Leão de Ouro de Melhor Filme em Veneza, Cuarón agradeceu a Libo, a empregada que cuidou dele em sua infância. O nome Cleo foi inspirado em Cléo das 5 às 7, longa de 1962 de Agnès Varda. Qualquer que seja o nome, ela é aquela pessoa quase da família que fica num limbo perigoso, meio lá meio cá. Só é considerada da família quando conveniente. Mas é ela quem frequentemente cuida de crianças pelo mundo, por necessidade ou por luxo dos pais.

Cuarón levou o Leão de Ouro em Veneza, em setembro

Marcelo Seabra

Jornalista e especialista em História da Cultura e da Arte, é atualmente mestrando em Design na UEMG. Criador e editor de O Pipoqueiro, site com críticas e informações sobre cinema e séries, também tem matérias publicadas esporadicamente em outros sites, revistas e jornais. Foi redator e colunista do site Cinema em Cena por dois anos e colaborador de sites como O Binóculo, Cronópios e Cinema de Buteco, escrevendo sobre cultura em geral. Pode ser ouvido no Programa do Pipoqueiro, no Rock Master e nos arquivos do podcast da equipe do Cinema em Cena.

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